31.12.12

Fim do ano


Encontras-te assim, sem memória,
como que apagado das moradas onde estiveste.
Olhas apenas para o passado.
Essa dor toda que sentes são as coisas esparsas,
tocadas pela tua respiração,
a acomodarem-se ao teu peito.
Tinhas que ser maior e mais forte
ou mais pequeno e mais fraco.

Fugiste de muita gente porque tinhas de fugir.
Não gostas de estar metido num saco de certezas
que não sejam tuas.
Não te aceitas num lugar onde não possas ser novo.
Não te deixas envelhecer no outro,
se o outro não for da tua sintonia.
Nessa fuga acabaste também por encontrar
sentidos mais fortes onde te aproximar.
Não falas nunca de sabedoria,
mas de tanto olhar por ti,
acabaste por perceber umas quantas coisas nos outros.

Moves-te por amor. Por nada mais.
Soltas todas as tuas inseguranças
e voltas a dar as cartas sobre a mesa.
Estás convencido de que te faltam palavras,
tentas sossegar-te quanto à falta de poderes.

Habituaste-te a que o silêncio calasse também o mundo à tua volta.
Das reações não entendes mais do que pequeníssimos sussurros
e a verdade é que, podendo chegar onde quiseres,
nunca estiveste tão perto da casa onde bate o teu coração.

Quem bater à porta, ver-te-á nas roupas simples,
no corpo reconstruído, no olhar vivo.
Quem souber ler, lerá.
Quem quiser sentir, sentirá.
Não existem homens novos, por aqui.
Apenas um que continua a rasgar pelo mato uma estrada para si. 

28.12.12

Epílogo


Parece que te vejo na distância,
não vejo ninguém,
sombra que caminhas sobre as rochas.
Frágil é a vista,
forte a imaginação.

Parece que invento o meu ritmo,
apenas cito a tradição,
uma palavra outra de poema em poema.
Resistindo à memória,
evita-se a traição. 

27.12.12

Variação sobre pequeno mundo


Mais lento que o lento,
doem-lhe os passos
por do amor não ter o efeito.
Existir, por vezes,
deixa-o ao contrário,
fraca serventia tem a verdade sozinha.

Sem saber o que procura,
mais roto que o mundo
perde-se por ruas sempre iguais.
Rejeita o acessório
mas crescer não é grandeza.
No fundo é essa a sua sina.



Pequeno Mundo é uma canção de Samuel Úria. Oiça-a aqui

26.12.12

Variação sobre fria claridade


De tanto brincar com fogo
no desejo de se encontrar,
acordou na claridade,
nem são, nem a salvo

de tudo o que sentia.
Dois olhos lindos depois,
julgando sonhar enfim,
na ponta dos dedos doendo

o gelo transformado em lume
onde tudo o que era, ardia.




Fria Claridade é um poema de Pedro Homem de Mello, aqui cantado por Lula Pena

25.12.12

O pastor; a solidão - 12


Na paisagem,
bandos de cães comendo as ervas
depois das ovelhas
terem sido o repasto de lobos.

24.12.12

O pastor; a solidão - 11


Foi brutal a devoração.
Os corpos vivos em multiplicação,
a raiva bem feroz nos dentes.
Ninguém mais
acima ou abaixo da terra.
Ninguém mais de dentes verdes.
Nenhuma aldeia, habitante.
O pastor lívido, sobre uma árvore,
sem saber se vivia ou se sonhava.
O pastor lívido sem qualquer reacção.
Ele era o pastor,
conhecia a palavra e o destino.
Ele conduzia o rebanho,
sem pensar, à sua perdição.
Ele inaugurava a sua solidão,
muito antes de ser sozinho.
O pastor lívido perante o vazio,
onde nem sobrou a decomposição.

23.12.12

O pastor; a solidão - 10


Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.
Mas o rebanho era agora ele próprio.
Já não toda a riqueza da sua família,
que deixara de existir.
Agora havia apenas aldeia,
os habitantes – feitos uma massa só – nela,
o pastor e o seu rebanho,
a sua solidão.
Ele conduzia o rebanho
e tudo o resto caminhava para o fim.

22.12.12

O pastor; a solidão - 9


Não se pode esperar que o que é igual
possa um dia ser diferente.
Essa é a verdade a que todos nos recusamos acomodar.
Tanta rebeldia só poderá causar dor,
sabem os sábios,
mas todos nos recusamos a aceitar.
Transformamo-nos numa amálgama de nós mesmos,
somos presas fáceis, não o sabemos.
Mas sempre há quem o descubra,
muito antes de nós.

21.12.12

O pastor; a solidão - 8


A aldeia era agora uma aldeia.
Os habitantes, de tão estranhos
uns aos outros,
ficavam cada vez mais iguais.
Alimentavam-se uns dos outros
e procriavam dentro dos próprios estômagos.
A aldeia era agora uma aldeia
a caminhar para dentro de si própria.
O pastor observava, no vale.

20.12.12

O pastor; a solidão - 7


Ele sabe que não se trata de um recomeço
- afinal, estamos sempre a começar.
Os seus passos aprenderam novos caminhos
e o seu corpo modulava-se pelas sombras.
A aldeia era agora uma aldeia
e apagavam-se os traços de familiaridade
entre os seus habitantes.
A família casa a família com a família
e a memória dos homens
vai-se desfazendo dentro das mentes
que aprendem a ambicionar.
Toda a descendência da sua família
tinha os dentes verdes
e os corpos preparados para o mais básico
dos prazeres.
Todos aqueles que haviam sido jovens
eram agora os mais velhos
e só ele permanecia igual,
o mais novo dos irmãos nascidos no dia comum.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho
que não parava de se multiplicar.
Os habitantes veneravam a sua passagem,
sem o compreender.
Ele descobrira a palavra
e logo aprendera a ficar calado.

19.12.12

O pastor; a solidão - 6


Reconhecer que a palavra organiza o pensamento
é o grande choque que espera adormecido
em todas as mentes que dormem ainda a sua infância.
Reconhecer essa capacidade de tudo encontrar,
naturalmente, o seu lugar.
Assim aconteceu ao pastor.
E onde há reconhecimento,
aí se situa o princípio do dilema.

18.12.12

O pastor; a solidão - 5


Todos os irmãos e os pais
tinham os dentes verdes.
Todas as suas mães
gozavam pela casa.
Homens e animais rodeavam-nas,
acossados,
querendo comer-lhes pedaços do corpo.
Ele era o pastor,
ele sabia a palavra,
e pouco faltaria para descobrir
a palavra nojo,
a palavra moral.
Todos os seus irmãos,
pais e mães,
viviam como se sobrevive,
debaixo da terra.
Ele saía para o vale, ele conduzia o rebanho,
ele descobria a solidão. 

17.12.12

O pastor; a solidão - 4


Ele era o único a saber.
Deram-lhe o cajado e empurraram-no
para o vale, ele era o pastor,
ele conduzia o rebanho,
e  à força da sua diferença
inaugurava a solidão.
Aprendeu de todas as linguagens
as palavras,
falava com as aves,
com as pedras e as árvores,
falava com os objectos
e inventava-lhes os nomes.
Só não falava com a sua gente
porque a eles todas as línguas
eram estranhas.
Ele era o único a saber.
O rebanho perseguia-o sem resistência,
toda a riqueza da sua família,
que à força da sua palavra
se multiplicava e fazia crescer,
sob os corpos,
todo o alimento de que precisavam.
Na noite, ele inaugurava
a solidão no seu quarto.
E quanto mais sabia, quanto mais o rodeavam,
maior era o seu isolamento.

16.12.12

O pastor; a solidão - 3


Dos tantos de sangue  e carne sua,
ele detinha as pernas mais fortes
e a capacidade da palavra.
Então, no seu quarto, ele inaugurava
a solidão.
Era de todas as noites a primeira,
o mais jovem de todos os irmãos
nascidos em dia comum
gritou com sentido.
Sempre a casa tinha sido feita
de grunhidos ou silêncio
e ele inaugurava a palavra dentro das paredes.
Todos acordaram em terror,
temendo a invasão,
e  bateram com os pés nas paredes,
esfregaram os cabelos com raiva
até que a palavra se repetiu.
Cercaram a sua origem e
perceberam.
A palavra era de um deles.
O pastor.

15.12.12

O pastor; a solidão - 2


Pensei que a solidão se fizesse sempre
pela exclusão –
realmente foi aqui que começou
a história do pastor.
No entanto, ele era uma casa inteira,
gente do sangue e da carne sua,
nomes que haviam surgido
entre as primeiras palavras da boca.
Ele era uma casa inteira
e o seu quarto inaugurava a solidão.
Os seus muitos irmãos,
pais e mães,
acorriam de braços abertos
à sua existência,
beijavam-lhe a fronte e davam-lhe graças
pela coragem.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.
Transportava nas mãos
a riqueza da família
que todos os dias mergulhava na terra
como quem vai alimentar as sementes
dos frutos e vegetais
fazendo amor, à bruta, com elas.
Os seus muitos irmãos e pais
chegavam a casa sujos,
os dentes verdes.
Eles eram o princípio da cadeia alimentar.
As mães sentavam-se sobre os animais da casa
e gozavam.
Limpavam as camas e os poucos objectos da casa,
acariciavam os instrumentos da cozinha
e gozavam.
Ele era o pastor, ele conduzia o rebanho.

14.12.12

O pastor; a solidão - 1

Experimenta ficar calado
- disseram-lhe –
o pastor parado no meio da estrada,
uma rua inventada entre as casas
compondo uma aldeia
onde havia apenas uma família
a crescer pelas necessidade do campo
e da fome.
O pastor parado e nenhum ruído,
já não era presente aquela frase
nem o sujeito que a fizera nascer da boca,
já não era noite, nem taberna,
o pavio do candeeiro há muito apagado
e seco.
O pastor parado e mais ninguém,
agora havia que aprender sozinho
todos os caminhos da solidão.


Nota: O pastor; a solidão é um poema inédito dividido em 12 partes. Entre 14 e 25 de dezembro será publicado neste blogue. Podem considerá-lo a minha prenda de natal. 

13.12.12

“Porque o mundo não se acabou”


Fazer dos dias uma coisa diferente, eis o desafio. Construir as horas de uma maneira nova, porque as palavras já não cabem no mesmo caminho. Fechou-se a estrada, acabaram-se os autocarros, as manhãs iguais na fila do trânsito. Acabou-se a metáfora do trabalho. No mesmo dia, um telefonema que nada diz do outro lado. Um silêncio furado, uma chamada para duas horas de um corredor artificialmente aquecido, os olhares especialistas à procura de evidências.

Mas, lá está, “o mundo não se acabou”. Há que regressar à palavra e encontrar novas estradas. Começar por recuperar, pedra a pedra, os muros caídos à volta do quintal. Embelezar o monumento não é bem a preocupação. Antes construir uma casa a partir da arqueologia da história. Colocar os pés, com força, à força, no terreno pantanoso onde acabaremos por ficar enterrados. 

Também por isso, nenhuma promessa. Apenas a vontade expressa. Nada mais que isso. 

6.12.12

Pedido

Peço apenas um pouco de claridade. Que a luz entre pela janela um pouco antes, que os sons do prédio sejam mais harmoniosos ao acordar. Peço apenas um pouco de calor. Que o conforto seja feito de peles que se tocam, que nada mais seja preciso para andarmos pela casa. Peço, ainda, alguma direção. Que os pés caminhem no sentido do encontro, que as ideias queiram ser aquilo que sempre foram. União.

5.12.12

Desconhecido

Não precisas de ter os olhos abertos para te sentires segura neste caminho. Sabes que não há pedras que te derrubem, nem ventos que te afastem. Podes descer pelos atalhos onde os teus pés te conduzem, nada há a temer no desconhecido. No fundo, somos uma partilha imensa de sensações. Onde tu fores, já sabes, irá também o que é, em ti, poesia.

3.12.12

Mudar


É o corpo a mudar, o corpo a mudar. Por uma dor invisível que não sabes localizar, onde algo se alinha, outro algo definha. É o corpo a mudar, sem idade de acontecer. Órgãos que se acomodam, à procura de lugar. O que houver para aprender, não se pode explicar. O que podes dizer, é o corpo a mudar.

1.12.12

Importante

É importante escrever, mas eu também gosto de um casaco, o café quente pela manhã, uma música suave que me vai ajudando a acordar. Eu sei, é importante o mundo, as pessoas lá fora, mas estivesses aqui e só isso contaria para que os vivos fossem vivos.

É importante a poesia, mas eu também gosto de fechar os olhos e deixar-me levar, abrir a janela e a humidade gelada a tocar-me na face, os cabelos desgrenhados, a barba por fazer, e tudo ter um sentido único e completo, porque estejas onde estiveres, estás comigo.

28.11.12

Sol

Hoje o sol acordou connosco, vamos passear lá fora e despir todos os pensamentos pelo jardim. Sim, está um gelo, deixa que o gelo purifique a pele que insiste em envelhecer sob o peso dos preconceitos. Hoje o dia quis fazer-nos uma surpresa, vamos dançar para a varanda e assobiar para que regressem os passarinhos. Sim, o jardim está vazio, deixa que a tua imaginação pinte todas as coisas com as cores da primavera.

27.11.12

A Rua

Desço a rua pelas últimas vezes, saboreando assim um ritual que se irá perder muito em breve. Sabermos, de antemão, do fim de uma rotina, dá-nos tempo para entender melhor aquilo que fazemos. Porque é que, ao longo do tempo, fui escolhendo esta rua, e não outra, para chegar ao destino; quem são estas caras que eu reconheço, sem nada mais saber do que o facto de com elas me cruzar nesta rua.

Desço, então, a rua, pelas últimas vezes, nada amargado com a situação reconhecida, nem sequer desiludido com o fim de algo que não soube bem como começou. O sol decidiu aparecer, apesar da brisa gelada que vem do rio. Na calçada, mais uns taipais anunciam novas obras, reconstituições. Sinal de que nada é para sempre, nesta rua, nesta vida.


26.11.12

Frio

Não me apercebi da passagem do verão. Apenas das janelas abertas e do sol na varanda. Não me apercebi de que o tempo passa, sequer. Era o primeiro agosto desta casa e tudo era novo, em descoberta.

Agora, voltou o frio. O inverno já conhecido por aqui. A noite ocupa o comprimento dos dias e as janelas permanecem fechadas. Corremos a buscar as mantas, festejamos os momentos em que o forno está ligado.

Resistiremos poucos dias ao ligar do aquecedor. Não estamos por aqui para sermos heróis de nada. Desejamos apenas que o conforto se construa como algo natural. Como o verão que passou despercebido, como depressa o inverno também acabará.

E, com ele, o frio.

20.11.12

Peregrinatio ad loca sancta

Podia dizer a poesia a tentar-me - não sei explicar melhor certas coisas que prefiro serem sem explicação. Mas talvez uma noite como as outras, com o amor de sempre, alguma música, sobretudo, tudo aquilo que nos une, cada vez mais.

Podia dizer a vida recomeça agora - quantas mentiras somos capazes de colar ao nosso inconsciente? - e afinal apenas o caminho que segue pelas suas curvas, uma e outra vez. Mas talvez o inverno que se aproxima, com o amor de sempre, uma fruta seca, sobretudo, tudo aquilo que nos faz ficar ainda mais perto.

noite

porque saber tudo,
ainda assim,
sabe-me a pouco.

memória contrafeita


 o astronauta alucinado recomenda, sorridente,
um encontro amoroso na rua do mercado
de modo a que os amantes possam estar conscientes
do valor passível de ser produzido num beijo
ou numa troca de palavras visivelmente apaixonadas.

assertivamente considera positivo e desejável
o equilíbrio das partes neste encontro já marcado.
o homem deve trazer casaco escuro, como os doutores,
e a mulher arranjar o cabelo de modo a fazer-se notar.
o valor do encontro é o desencontro de todas estas regras.

no conjunto das palavras que se encaixam nestas frases,
as que vão ser debitadas pelos lábios molhados dos amantes,
encontram-se aquelas que soam a frutos, sumos e liberdades,
ou seja, as palavras que são queridas por quem se ama.
o astronauta alucinado deseja-vos bom fim-de-semana.



25.5.12

Antes e depois de 1996 (5)

A literatura é um lugar estranho. Passamos a maior parte do tempo a tentar fazer dela o que ela não é. Às vezes, resulta, porque as pessoas esperam sempre coisas diferentes daquilo que as próprias coisas são. Esperam grandes discursos, temas que possam compreender, polémicas que possam ser resumidas numa página de jornal ou nos trinta segundos do telejornal. A literatura não é nada disso. Embora muitos de nós preferíssemos que ela assim o fosse. José Saramago deu aos livros, em Portugal, acabou por acrescentar aos livros, todo esse mundo que não era o da literatura. E com isso ganhou o Nobel. E com o Nobel um lugar na literatura. A literatura é um lugar estranho. Antes e depois de 1996.

24.5.12

Antes e depois de 1996 (4)

Uma coisa é segura, José Saramago ficará como a grande figura da literatura portuguesa do século XX. É difícil tentar prever se os seus livros serão ou não lidos, embora arrisque que, para além do Memorial do Convento, outros dos seus livros serão sempre mais lembrados pelos polémicos temas do que pela qualidade literária. É essa a condenação que está reservada para os autores que conquistam o seu lugar, também (ou sobretudo?), no espaço mediático. José Saramago entregou-se sempre a causas polémicas pelo mundo inteiro (Fidel Castro, os Chiapas, a luta contra o Deus da Igreja Católica) e foi isso, em última análise, o que lhe terá garantido um lugar de reconhecimento público que nenhum outro escritor português conseguira. Por outro lado, não deixa de ser uma ironia histórica que o seu reconhecimento tenha, em parte, beneficiado da máquina propagandística espanhola, a partir do momento em que escolheu a Espanha como local de residência.

23.5.12

Antes e depois de 1996 (3)

Quando um autor tem o condão de nos fazer sentir isso, a nossa tentação é perseguir os seus outros livros, em busca da repetição dessa sensação, como se fossemos viciados no consumo de determinadas sensações. E a má notícia que José Saramago tinha para mim é que, em mais nenhum outro livro, eu poderia encontrar essa satisfação de leitor encantado.  Não me encontrei no Evangelho segundo Jesus Cristo, nem no Ensaio sobre a Cegueira, nem nas Intermitências da MorteSaramago fez a sua carreira a escrever bem, uma escrita que só os grandes nomes clássicos da literatura mundial conseguem assegurar, mas faltou-lhe sempre o brilho que reserva, para além da racionalidade, um lugar no coração dos leitores.

22.5.12

Antes e depois de 1996 (2)

Mas o Memorial do Convento, nesse ano de 1996, teve o condão de me agarrar a atenção, talvez porque eu fosse um jovem freak, interessado pela história do meu país (coisa que, na sua maioria, eu não compreendia, como é que um país tão pequeno foi capaz de produzir tanta tecnologia e gerar tanta riqueza, para depois, em meras operações de um insuportável laxismo católico-romano, se tornar naquilo que sempre foi, um país dependente da boa vontade de estranhos), ou talvez porque eu vivesse (como ainda vivo) bem perto de Mafra e toda a história daquela imensa construção que inunda a paisagem da pequena vila do oeste de Portugal fosse, afinal, uma coisa bem próxima, capaz de ter envolvido alguns dos meus antepassados, capaz de ter decorrido em terrenos que eu acabei por vir a pisar. Fiquei agarrado, não a Saramago, mas à sua participação nesta ideia de que a literatura serve para nos fazer sentir na pele aquilo que o ser humano já foi, vai ser ou poderia ser se, em algum momento, as coisas se tivessem passado de maneira diferente.

21.5.12

Antes e depois de 1996 (1)

Antes de Memorial do Convento, não sabíamos ser possível conjugar a história de um evento maior da memória portuguesa com uma iluminada versão da magia que é um encontro entre pessoas que amam e sonham intensamente. Antes de Memorial do Convento, isso não existia, pelo menos para mim, quando em 1996, na pequena cidade de Torres Vedras, tinha eu dezassete anos, me fechei no quarto para cumprir a obrigatoriedade de ler esse romance que constava do programa de leituras para estudantes do ensino secundário.  Foi uma revelação para a qual estaria, até, pouco preparado, porque ninguém nos prepara para o facto de em plena adolescência sermos obrigados a ler uma quantidade de obras pré-escolhidas pelo Ministério da Educação. O mais habitual é essas obras serem pouco apropriadas para quem ainda pouco ou nada entende da vida, quanto mais de literatura, e é também normal que sejam obras sem a suficiente personalidade para convencer um jovem.

18.5.12

Resumo


Deve haver uma boa razão para que isto subsista desta maneira. Deve haver. Não perguntem.

17.5.12

Madrugada


Há quem lhe chame madrugada. Não estás certo que exista. Preferes dormir.

16.5.12

Noite


Chamemos-lhe noite. Quando fechas as portas e te deixas levar. Interessa-te o amor e a simplicidade dos gestos. Não temes fechar os olhos, beber o que te oferecem aos lábios. Agora dependes apenas de ti.

15.5.12

Tarde


Chamemos-lhe tarde. Quando o mundo começa a ficar difuso. As novidades têm todas já algumas horas. A tua atenção vai-se dispersando pelos pormenores. Tudo parece, simplesmente, mais forte do que tu.

14.5.12

Manhã


Chamemos-lhe manhã. Quando da cama saltas a energia ao máximo. As ideias tensas, fortes, sentidas. A destreza afinada. A vontade, simplesmente, de conquistar o mundo.

11.5.12

Sono


Era só uma ilusão, mas eu estava realmente certo. Mas ir para onde, fazer o quê. Agora éramos crescidos e as pessoas deixavam de nos falar sempre que nos encontravam pela rua. Havia, por estranho que possa parecer, apenas uma bicicleta na ilha. Sentei-me e comecei a pedalar. O mar desaparecera a oeste. Seis dias depois, estava de volta a casa e tinha de novo sete anos. Já não me apetecia fazer contas. Nem voar. Queria apenas dormir. No meio do nada, era impossível sonhar. 

10.5.12

Nuvens


Se só te restarem as nuvens para onde subir, pensa bem de que matéria são feitos os teus sapatos: é impossível escorregar no vapor. Eu aprendera, entretanto, a medir melhor as palavras. Serão menos de cinco centímetros, garanti, menos de cinco centímetros até que apareça um novo cidadão para acarretar com todas as culpas.

9.5.12

Norte


Repetia-se à exaustão o bê-á-bá da sobrevivência em lugar algum e tomavam-se chás coloniais num bar com vista para o porto. Ainda agora aqui chegados e já tantas manias de quem manda e de quem sofre. Eu olhava as minhas mãos e tentava fazer contas. Não havia mais nada, o norte era uma missão perdida para mim.

8.5.12

Na Ilha


Comer o que há para comer ou deixar que a fome nos convide à loucura: eu sei tão pouco das mais importantes decisões da vida e sei tão bem o quanto fere um olhar banal. Era uma ilha ou era uma estação de metro, uma cara familiar ou um vulto desconhecido, um cérebro ou um fígado, era a hora certa para saltar para dentro da carruagem, mas a hora errada para decidir viajar: a verdade é que já todos tínhamos perdido a oportunidade de fugir.

7.5.12

A estranha história de K.


Aprender a contar pelos dedos ou encontrar o escadote ideal para subir às nuvens: eram estas as duas coisas que eu decidira aprender quando me levaram às costas para uma ilha no meio do nada. Um lugar onde, ali chegados, todas as nossas prioridades se tinham alterado. 

4.5.12

Imaginação


É onde acontece tudo. Até que te fazem uma chapa ao esqueleto e o mundo começa a arrumar-se em factos. Alguns deles, consumados. 

3.5.12

Consequências


Começa, certamente, no osso. Depois, vai-se espalhando pelos músculos circundantes. Pode chegar até ao cotovelo ou a uma ligeira ausência de força por todo o braço e mão direita. No entanto, se respirares fundo e te sentares direito numa cadeira, tudo parece evaporar-se. E associas, assim, a dor à imaginação.

2.5.12

Fratura


Poderá ou não ter acontecido. Seguramente há muito tempo. Não deste por isso. Mas agora gastas os dias a tentar lembrar-te de qualquer coisa que talvez nem tenha existido.

1.5.12

Clavícula


As suas funções são atuar como suporte na manutenção do membro superior livre do tronco, de forma que haja máxima liberdade de ação, fornecer fixações para os músculos e transmitir forças do membro superior para o esqueleto axial. Por vezes isto dói. Outras, não. 

30.4.12

Dor


A Dor. Parece uma coisa simples, não é? Às vezes, aparece. Outras, desaparece. Nem sempre tem explicação.

28.4.12

Ele agora está velho - VI


Olhe, nem Aljezur, nem despedimento. O rapaz queria viajar. Andava sempre nas festas, nem tanto pelas festas, mas para andar de um lado para o outro. Ia a Aljezur, a Odeceixe, ao Cercal… E então quando eram as Festas de Beja, até pedia dias ao patrão. Uma vez disseram-me que o tinham visto em São Marcos da Serra, nas festas. Ele gostava de andar de um lado para o outro, tinha idade para isso, e olhe que ele não devia ganhar nada mal ali na loja. Mas o patrão queria alguém mais sossegado. Cá para mim, quando ele foi para Aljezur, já sabia que não tinha emprego, já deviam ter tido essa conversa. Por isso é que ele se meteu naquela briga por lá, ele nunca se metia nisso. Ele ia às festas para ver as pessoas, para lhes ouvir as conversas. Sei disso pelo que ele me contava. Era passar ali à porta da loja e lá estava ele sempre pronto para dizer coisas. Para contar onde tinha andado, o que tinha feito. Quando voltou de Aljezur é que já não falava muito. Quantos dias foram? A gente até pensava que ele tinha morrido para lá. A festa foi no domingo e ele apareceu aí na quinta-feira. Vinha todo sujo, ele que era um rapaz de se arranjar, de andar direitinho, era um homem de trabalho, mas gostava de fazer figura. Apareceu na quinta-feira e vinha pendurado numa camioneta das batatas. Ao que sei, apanharam-no ali no Vale do Juncalinho, está a ver onde é? Devia voltar a pé. Naquele tempo era assim, a gente bem gostava da camioneta, mas não havendo dinheiro, olhe, a malta desenrascava-se a pé. O que é que ele lá ficou a fazer? Quem lhe disse que ele ficou por lá? Não. Cá para mim foi ver o mar. Ele falava muito disso. Que havia de ir uns dias ver o mar. E ali de Aljezur à praia aquilo era um saltinho. Vai-se a ver e ele queria era ser marinheiro. Foi para ali à procura de alguma fragata, o rapaz. Ele não era doido, mas gostava. E se não tinha ninguém à espera dele aqui, para quê voltar. Foi ver o mar, para mim é certinho, foi ver o mar. E depois de andar ali uns dias lá pensou que voltava a pé para a terra. Por isso é que o encontraram na quinta-feira, por lá. E trouxeram-no para aqui. Trouxeram-no para aqui e em vez de ir para casa mudar de roupa, sentaram-no na taberna, queriam que comesse, que bebesse um copo, que contasse o que lhe tinha acontecido. Mas ele nunca mais falou muito. Ficou ali, deixou-se de ser amigo de falar. 

27.4.12

Ele agora está velho - V


A Maria Aparecida tinha o seu feitio, mas isso que me está a dizer parece realmente muito exagerado. A mãe dela morreu quando ela era ainda pequenina, tinha sido sempre muito fraca dos nervos e a gravidez não lhe fez nada bem. Aliás, a terceira gravidez, porque há o irmão mais velho e tinha havido pelo meio outra barriga que se ficou. Foi aí que a mãe ficou pior. Depois ainda engravidou da Maria Aparecida, mas foi contra a vontade dela. Por ela, não queria mais filho nenhum. Mas o patrão, sabe como são os homens. Só um filho não chegava. Era preciso mais gente na casa. Ela ficou muito frágil quando a criança nasceu e morreu pouco depois. A Maria Aparecida cresceu numa casa de homens, era uma revoltada. Queria ser como eles, fazer o que eles faziam, o pai ainda a tentava segurar, mas aquilo era um feitio que ela tinha de pequena, criada no meio dos homens, não era nada menina. Era é muito bonita. Mesmo muito bonita. E o pai preocupava-se com isso, porque vinham para aí os primos de Lisboa e os outros rapazes, e uma moça daquelas assim bonita, criada no meio de homens, o pai tinha medo do que saísse daquela cabeça. Então, parece que a prendia no quarto ou assim, e ela quando saía vinha louca, ia para a rua, queria ver tudo, sentir tudo, fazer tudo, era assim uma rapariga bem diferente das outras. A única pessoa com quem ela acalmava era ele, isso sim. Ela passava na loja, conversava com ele, ficava quieta. Ele sabia falar-lhe, sabe? Ele sabia o que ela queria ouvir, tinha-lhe o jeito. E ela gostava. Se calhar era o único homem que lhe falava como se ela fosse um homem também. Era isso que ela gostava. Mas é claro, não podia casar com ele, nem eu acho que ela alguma vez tenha pensado nisso. Ele era um amigo, o rapaz com quem ela falava. Para as outras coisas, bem, começou a abrir os olhos e assim, começou a arranjar-se de maneira diferente, devia ter dezasseis anos ou assim, já era uma mulher. O pai preocupava-se mas qual é o pai que não se preocupa? Quando ela foi para Beja viver com a tia, para estudar, lá conheceu esse rapaz e marcaram o casamento. Para o pai foi um alívio. Não, acho que o despedimento não teve nada a ver com isso. Eu cá acho que não. 

26.4.12

Ele agora está velho - IV


Pois foi, houve algazarra lá, houve. Mas não foi nada disso. Ele desafiou um rapaz que estava no tiro ao alvo. Desafiou o rapaz e apostaram quem acertava no alvo. E o rapaz atirou aquilo direitinho no centro do alvo. Mesmo direitinho. E disse-lhe que se calhar nem valia a pena era gastar o tiro que a aposta estava ganha. Ele nem o olhou. Pegou na espingarda, botou um tiro mesmo dentro do buraco do outro, como se fossem tiros iguais, dois tiros e só um furinho no papel do alvo e depois largou a espingarda e deu-lhe aquela batatada na cara que o outro ficou parvo. Ficou parvo e caiu de cu, ali na feira. Mas nem reagiu. Ficou quieto. E ele seguiu caminho e foi para a taberna beber um copo. Eu cá para mim acho que ele já não andava certo. Já tinha havido coisa. Não foi daquele dia. Ele já vinha com coisas na cabeça. Eu cá para mim já havia problemas com o patrão. Ele ficava muito tempo à porta da loja, a falar com as moças, com as freguesas, e o patrão queria-o lá atrás do balcão, como nas lojas de Lisboa, está a ver, em que os moços ficam atrás de balcão, assim direitinhos, à espera. Ele não era nada disso. Acendia um cigarro e ficava ali à porta, a chamar as freguesas. E as raparigas passavam e falavam com ele, ele fazia-as rir, era assim. Era bom tipo. Tirando os repentes, era bom tipo. Mas já havia ali coisa, não foi em Aljezur. Aquilo foi uma briga normal de rapazes. Ele é que já tinha coisas na cabeça. E era o patrão. O patrão ou a Cidinha. Alguma coisa era. Já sabe da Cidinha não sabe? Essa rapariga tinha o diabo no corpo. Ai é que tinha mesmo. O pai chegou a levá-la ao médico e tudo. Aquilo parecia um furacão quando passava na rua. O pai queria-a em casa e ela gritava e saía de casa, parecia doida. Só ele é que sabia falar com ela. Mais ninguém.

25.4.12

Ele agora está velho - III


Olhe, eu posso garantir-lhe que houve mesmo pancada lá em Aljezur. Eu sei porque estava lá, então não houvera de estar. Era a festa de Aljezur, porra, toda a gente ia lá ao domingo. Aquilo foi assim, estavam uns rapazes na barraca do tiro ao alvo quando ele se chegou a olhar. Acho que era rapaziada de fora, pela algazarra que faziam, ou então já vinham com a festa de ontem, está a perceber? Aquilo era tiro no alvo e tiro em toda a parte e ele chegou-se a olhar, daquela maneira que ele olhava, sabe? Ele ficava assim encostado com o cigarro no canto da boca, tinha visto aquilo num jornal, que era dos filmes ou o raio. Ele põe-se assim e a algazarra começa-se a virar para ele. Houve ali umas palavras, de um lado para o outro, e olhe, ele era um rapaz sossegado, mas está a ver, tinha aquele feitio de ser alto e olhava os outros… Bem, aqueles não o conheciam e não gostaram. Atiraram-se a ele, mas ele tinha uns braços que parecia um touro. E ele guardava a força toda. Ele guardava aquela força durante semanas e semanas em que não se zangava com ninguém e depois quando dava um soco, deus te livre, o primeiro rapaz que se chegou a ele levou naquela cara com tanta força que deve ter ficado com a cara pisada durante semanas. Depois eles eram muitos e atiraram-se a ele e ele ainda lhes deu luta. A gente queria ir ajudá-lo mas ele negava-se. Gostava de se meter naquilo sozinho. Também aquilo durou enquanto  o diabo esfregou o olho, ele deu o soco a um, uns pontapés nos costados de outro, eles eram quantos, uns quatro ou cinco, puseram-se à roda dele, mas já estava o dono da barraca a chamar pela Guarda, com medo que lhe caíssem em cima das coisas e lhe deitassem aquilo tudo ao chão, e a rapaziada endireitou-se toda e foi cada um à sua vida. Eu cá acho que foi só isso. Cada um à sua vida. Ele lá devia ter mais alguma coisa.

24.4.12

Ele agora está velho - II


Dizem que todas as histórias são histórias de amor, não é? Mas esta não é. Ele era um rapaz todo bem posto, era, e ficou assim quando a Cidinha casou. A Cidinha era mesmo a rapariga mais bonita da aldeia. Mas não foi por isso que ele ficou ali, a passar os dias inteiros na paragem de autocarro. Não, ele ficou ali porque o patrão o despediu. Num domingo dizem que ele foi à festa de Aljezur. Apanhou a camioneta e lá foi ele, para a festa. A festa de Aljezur era bem grande, naquele tempo. Tinha barraquinhas de tiro ao alvo, tinha o baile da matiné, umas vendas de bebidas, uns jogos para os rapazes. Ele foi para lá, ainda demora um tempo grande a lá chegar, mas naquele dia havia camionetas bem cedo, porque muita gente ia à festa. O que eu sei é que ao fim da tarde, quando a camioneta veio de volta, ele não estava lá. Já foi há tanto tempo. Mas ele não estava lá, isso é certo. Passaram dois, três dias e ninguém sabia do homem. Uns já diziam que tinha se metido numa bulha com rapazes de lá e que a Guarda o tinha preso. Não sei bem o que aconteceu, não lhe sei dizer. Eu também fui a Aljezur nesse dia. Apanhei a camioneta com ele. Eram uma sete da manhã e já estava um calor dos diabos. Fumámos um cigarrito antes da camioneta chegar. Ele já não falava muito, fizemos o caminho todo meio calados. Havia umas moças que iam mais animadas, na frente. Nós íamos com a atenção dos rapazes, está a ver, a ouvi-las assim, a conversar, a gente a ouvir. Um ou outro mais malandreco lá tentava dizer alguma coisa, mas elas mandavam-nos estar calados. Sabíamos se falássemos muito, elas não diziam nada, e a gente queria era ouvi-las. Chegámos lá antes da hora de almoço. Havia muita gente em frente à Igreja, a sair da missa. Já estava a festa toda montada, então aquilo já durava há dois ou três dias, a gente é que só podia lá ir ao domingo. Eu ainda andei com ele um bocado, a ver aquilo, a beber um copo. Depois fomos aos jogos e deixei de o ver. Mas não, não houve bulha nenhuma, aquilo era tudo gente boa. Tudo sossegado. Ele lá foi à vida dele e não voltou na camioneta. E depois foi isso.

23.4.12

Ele agora está velho - I


Ele agora está velho, mas era um rapaz todo bem posto. Enamorou-se da Cidinha, a filha do patrão aqui da aldeia. Toda a gente lhe disse que não era grande ideia, ficar assim apaixonado pela rapariga. Mas os homens, sabe como são, os homens são mesmo assim, metem uma ideia na cabeça e depois tirá-la? Não se tira. A Cidinha era mesmo a rapariga mais bonita da aldeia, nisso ele não foi nada parvo a escolher. Mas ela lidava com os meninos de Lisboa, que passavam aí no Verão. Tinha primos que eram  estudantes. Tinha uma tia em Beja que queria que ela estudasse. E então era com este rapaz que ela ia casar? Pois está claro que não. Ele agora está velho, mas naquela altura não era nada de mandar fora. A Cidinha é que estava habituada a outras coisas. Rapazes perfumados, com camisas bonitas, engomadas. Sapatos engraxados. Como é que ela ia ligar para um rapaz com botas do campo, com as unhas cheias de terra. Foi uma tontice. Começou a ver-se pela cara dele na taberna, a olhar para o sol no meio da praça, a ficar calado. Os outros rapazes punham-lhe copos à frente e ele parecia que tinha perdido a força nos braços, nem bebia aquilo. E isto foi quando? Foi quando a Cidinha se casou. Pois. Ela casou-se e ele ficou naquele desânimo. Naquele apagamento. Ficou assim como está para ali, velho num repente. 

20.4.12

Eterna promessa

Viver no mundo como se fosse sempre sexta-feira, sem ter nunca posto um pé num sábado.

19.4.12

Parolo Hardcore

Das pernas tremo e muito tempo calado fico. As viagens fazem-me calor, o casaco aguenta-se sobre o ombro. Se me diriges a palavra gaguejo, se não me diriges deixo-te ir – na minha terra, meter conversa é facilmente confundido com perseguir. Se te olho fixamente, eu sei, vês o vazio dentro do meu olhar, mas talvez não percebas que existe uma coisa chamada pensar. As tuas fronteiras são o que são. As minhas não me servem de prisão.  

18.4.12

Só me sai poesia

Para o Diego Armés

Já tentei de tudo para ser o que sou, engraçado como tão longe de mim está esse tipo onde eu me vejo. Entre mim e ele, tantas pessoas que passam, num ruído imparável de uma carruagem de metro sempre em hora de ponta. Eu já tentei de tudo para ser eu de outra maneira, talvez mais fiel ou mais consistente com o que penso. Mas no fim do dia, só me sai poesia. 

17.4.12

Fotografia em Veneza

Para o Paulo Bandeira Faria

Sentados os três na escadaria, o escritor vai desenrolando as narrativas da cidade aos ouvidos fechados dos seus dois filhos. A imagem fixa-se na fronte sonhadora do escritor, no centro de tudo, como se iluminado pela mão de um qualquer pintor renascentista. Das histórias que o escritor contou naquela tarde, não há nenhum registo, e mesmo se perguntassem a uma das crianças, seria parca a sua memória. No entanto, daqui a muitos anos, quando do escritor sobrarem apenas os livros e os afetos e as crianças forem aquilo que, pela vida, foram desejando ser, uma delas lembrar-se-á exatamente do que falava o seu pai, naquela tarde, em Veneza. Não há forma mais poderosa de entender o valor da literatura. 

16.4.12

Fim

Um barulho de tesoura, ao fundo, a casa vazia e tanto passa na tua cabeça o passado como o futuro. Engoles em seco, uma ou duas palavras, poucas vezes percebes onde te levam os teus passos. És navegante ou estás só perdido, a casa vazia, os olhos ardem, o vento sopra, o mundo é isto mesmo. Não sabes se desaprendeste a ler ou se é só o papel que tremeu todas as letras desenhadas. Mas tanto faz. 

15.4.12

Mensagem

A partir de Carloto Cotta

“Quando a alma doía, o corpo era dormente”. Não foi assim há tanto tempo. Aquela longa alucinação adolescente, passada sentada num pequeno banco do café em frente à escola. Tu descias a rua e eu acendia cigarros, os dedos pousados sobre o jornal desportivo, as unhas por cortar. Tu sabes, eu sempre fui comodamente desajeitado à minha maneira e gozar agora com o tempo que passou é pouco. Não há lágrimas que viajem em calendários. É por isso irónico que eu te encontre quando, na alma sossegada, o corpo aprendeu a fazer-se tempestade. Querer e não querer são, quase sempre, sentidos diferentes que nos levam ao mesmo destino. Pois por muito que “depois de uma noite venha sempre um dia”, na minha cabeça só ecoa um “aceita, Maria”.

13.4.12

Decorar

Era, sem dúvida, qualquer coisa muito fácil de decorar. Mas esqueci-me. 

12.4.12

Novos

Ninguém a ficar mais novo, disso tenho a certeza, ninguém está a ficar mais novo. Um dia andamos todos na escola e todos tivemos sonhos. Cada um arranjou maneira de acomodar os seus à sorte que teve, e agora dirigimos associações, trabalhamos em escritórios, seguimos negócios de família, enfim, somos todos mais ou menos parecidos com os outros homens mais velhos do que nós. Eu ia dizer pais, mas não, parece que escolhemos ser diferentes deles, apenas para sermos parecidos com outros homens quaisquer. Ninguém está a ficar mais novo. Lembramo-nos de músicas antigas e sorrimos para quem passa na rua, como se quisessem saber de nós, estas outras pessoas que têm as suas vidas, que têm os seus sonhos, que querem ser parecidas com os seus pais, mesmo, apenas sendo mais felizes, um pouco mais felizes e ricas, essas pessoas, as que ainda são novas, as que ainda terão tempo para pensar que não ficarão mais novas, mas só daqui a uns anos, talvez, ou numa outra noite que não esta. 

11.4.12

Mesa

É só uma mesa de café, mais uma mesa de café. Uma noite de primavera mais fria do que todas as outras. A lembrança de neve do ano passado, “no dia 25 de abril”, uma mesa de café, alguns homens com pouco cabelo, garrafas de cerveja vazias, um ou outro copo de licor, uma mesa de café. Um maço de cigarros que se vai esvaziando, um telefone que toca, um encontro que se marca. A noite mais fria, as mãos abertas sobre os braços, qualquer coisa que nos aqueça, “um sítio mais quente, vamos para um sítio mais quente”. É só uma mesa de café, palavras de circunstância, pessoas que se conhecem só de vista, vidas que se cruzam, inúteis, numa mesa de café. Apenas uma mesa de café.

10.4.12

Revistas

Olhas as revistas antigas espalhadas pelo chão da sala e não é a viagem que tinhas previsto. Não ficaste horas e horas agarrado aos pormenores, não lembraste felicidades passadas, uma ou outra coisa que a memória apagou. São revistas antigas, papel, que em vários momentos pensaste deitar fora e só guardaste porque, talvez, dizias tu, talvez isto valha algum dinheiro. Agora estão espalhadas pelo chão da sala, tempo de outro tempo que tens dificuldade em arrumar, na limpeza da casa onde preferes pensar no futuro. 

9.4.12

Músculo

Aprendes a situar os músculos quando eles se rompem. Queres andar e não podes. Um mínimo esforço e uma dor rasga-te os sentidos. Sentes-te fraco e forte, ao mesmo tempo, incapaz de decidir, vivo pelo sofrimento. Que queres mais? És humano. Definitivamente humano. E toda a cura é um processo de regresso da dor. 

5.4.12

Cruz

Quando fizeram com que Jesus se deitasse sobre a cruz, antes de lhe pregarem as mãos e os pés, apenas uma coisa lhe passou pela cabeça. Poder, finalmente, descansar. 

4.4.12

Carne

A carne corta-se com leveza. Seguras a faca e deixa-la percorrer o músculo, lentamente. Como se tivesse sido feito para ser cortado, o músculo vai-se abrindo ao contacto com a lâmina, sendo que, depois de cozinhado, nenhum sangue escorre do pedaço. A carne corta-se como um dia nasce, devagar, no ritmo exagerado das coisas naturais. Depois leva-la à boca como se entendesses a religiosidade do momento. Mastigas de olhos fechados, em paz, mesmo que consciente de um certo pecado, não o da carne nem o da gula, mas o da luxúria. Repousas a faca sobre a mesa enquanto engoles o bolo mastigado. Sabes que, apesar das glórias do mundo, tu podes descansar. 

3.4.12

Peso

Subia a encosta, com uma mesa de sala às costas. A cada três passos parava, mas logo a mulher gritava que queria a mesa em casa antes que anoitecesse. Sísifo lá carregava, certo já da nulidade do seu esforço. Ao longo dos anos, tinha sido assim. Carregar cadeiras, armários, mesas, um roupeiro(!), encosta acima, para compor a casa, a casa que haviam sonhado sua. Mas quando finalmente lá chegava, por uma razão ou por outra, nada servia, nada parecia satisfazer a vontade da sua mulher. Então, deixava a peça à porta de casa e uma carrinha municipal acabava por passar para devolver o peso ao entulho do lixo. De alguma maneira pouco compreensível para ele, a carrinha só aparecia para se desfazer de partes da sua vida, nunca para acrescentar algo. Pensava nisto enquanto subia a encosta. Nisto e na vontade, cada mais pesada, de descansar. 

2.4.12

Ovos

Em busca dos ovos, ela andava em busca dos ovos. Os olhos pequenos, os cabelos despenteados, uma tarde de chuva à entrada de abril. Pela rua, por entre os poucos carros ali estacionados. Procurava os ovos, os ovos da Páscoa, que avó lhe dissera que poderiam estar em qualquer lugar. “Já vi na casa inteira, não estão lá”, disse-me ela, a respiração alterada. Eu cocei a cabeça, chovia agora mais forte. Tinha trocados os domingos, a idade, as intenções. Segurei-lhe a mão e conduzi-a para casa. Era mais do que hora de tomar a medicação e descansar.