31.1.13

Dois velhos


No funeral de um velho
outro velho
esconde as lágrimas
nas mãos.

Sem saudade
nem pressa
sabe estar próxima
a sua vez.

30.1.13

Vizinho


Sustinha o arfo
e toda a espera
era uma manhã
não inaugurada.

Mas mais capaz se
sentia quando,
ao aprender
da terra
seus bons costumes,
boa nova anunciava
a qualquer
homem
que por lá
passava.

29.1.13

Há festa no céu


Para o meu avô Tiago e para o meu tio Vidal

Com este que morreu,
uma coisa é certa:
há festa no céu.

Uns quantos como ele
faz já um tempo
esperavam companhia,

sentados à mesa
inventando sinfonias
com garfos e facas.

Com este que faltava
está a equipa completa:
há festa no céu.

28.1.13

Canto


Percebi por estes dias
a minha falta de jeito
para cantar a morte.

Poema certo é silêncio
ou vento forte
no ponto mais alto da colina.

Percebi por estes dias
as palavras não sobram
para cantar a morte.

25.1.13

Não havia para ti


Não havia para ti
o condicional.
Apenas
o claro
o óbvio
o como
tinha de ser.


da série Cinco poemas para luzir

24.1.13

A porta fechou-se



A porta fechou-se
e agora falta-nos
a coragem de a abrir –
voltar a olhar as coisas
com sossego,
ter a mesma coragem do cão,
deitado sobre a almofada
logo naquela manhã.

A porta fechou-se
mas todos sabemos
que o princípio da vida
nos obrigará a abri-la –
arrumar os armários,
limpar o pós dos livros,
aprender a lidar,
enfim, com o vazio.


da série Cinco poemas para luzir


23.1.13

Olhar o vazio


Olhar o vazio
e saber-te presente.
Eis o que ensinaste
a vida inteira.


da série Cinco poemas para luzir

22.1.13

Pergunto-te


Pergunto-te,
agora que não podes
responder

e oiço,
melhor,
a resposta.


da série Cinco poemas para luzir

21.1.13

Às portas


Às portas
das casas funerárias
uma luz
permanece acesa
durante a noite.

- Estamos abertos,
parecem dizer.
E os que vão morrer,
acreditam.



da série Cinco poemas para luzir

18.1.13

O farol o pescador - 5


Do pescador
constrói-se notícia
no passado,
é sempre
depois da morte
mencionado.
Não se lhe contabilizam
os peixes,
sempre escassos,
na boca da prole.
Não se lhe registam
as palavras,
cruas ou duras,
à mulher destinadas.
É a morte
quem lhe merece
a palavra,
a recordação,
quantas vezes,
uma estátua.
Ainda assim,
todas as noites,
luta o pescador
para ficar vivo.
Diria que luta
para não existir,
o pescador
que se quer
desconhecido.

17.1.13

O farol o pescador - 4


A maresia na face,
de quantos mortos
feita é?
Pois que
se o sal de lágrimas foi feito,
restaram a pele e os músculos
secando,
os ossos mais que desfeitos,
o gelatinoso emaranhado de cabelos,
tudo em líquidos concluído,
tudo em mar agora feito.
A maresia na face,
de quantos mortos
feita é?

16.1.13

O farol o pescador - 3


Transformando em espirro
a mais alta onda,
defende-se a mente
de tudo o que a atemoriza.
Está cheia de medo,
a consciência,
e vomita no balanço
da embarcação.
Transformando em espirro
o tremor do peito
ausenta-se o coração
da contabilidade das doenças.
Bate pouco e temeroso,
o músculo,
quase se apaga
na taquicardia da viagem.

15.1.13

O farol o pescador - 2


Braço roçando o mar,
nunca aprende nesse sal a sentença
que lhe aguarda a imersão
de toda a existência.
O braço detém ainda o poder da fuga
e o seu gesto é feito apenas
de carícia,
ignorante de toda a braveza das águas.
O mar é um ser de raiva,
salivoso e imponderado,
renovando, maré a maré,
a sua injúria à terra.
O braço, esse, recolhe-se.
Procura uma toalha, seca-se.
Faz uso da morte
como hábito de higiene.

14.1.13

O farol o pescador - 1


Lança-se o farol na noite,
pai silencioso de toda a terra,
à porta esperando os filhos mortos.
Lança-se, como se perguntasse,
e ao mesmo tempo
conhecesse já impossível a resposta,
pelo destino dos homens nela.
O farol não segura os corpos
que vão alimentar o mar.
E não, também não avisa
da tempestade que os barcos destrói.
O farol é apenas companheiro
do desvio
que ficou em casa chorando o medo.
Lança-se, continuamente, na noite,
na esperança de ser conquistado
pela morte.

11.1.13

Cacela


O sol vai descendo
sobre a casa do pároco
e o barulho dos pássaros
faz-nos acreditar
que alguma moura encantada
sai agora das ruínas
da velha vila de Cacela.

Pela calçada não ecoam
os seus mais que leves passos
e as sombras já são parcas
para lhe definir contornos.
Assim seguimos sossegados
e seguros no silêncio do povoado
da velha vila de Cacela.

Se por detrás de cada pedra
resiste uma história por contar
deitemo-nos sobre a muralha
e deixemos que seja a ria
a murmurar-lhe os versos.
Pois que tudo é livre de se imaginar
na velha vila de Cacela.

O sol já caiu para lá
dos muros do cemitério antigo
e adormecidos estão
os pássaros entre as árvores.
Se moura existe, talvez desencantada
se transforme pela magia que resiste
na velha vila de Cacela.

10.1.13

Se te visse em meu lugar


Não tardes o quanto costumas,
amigo, diria eu,
se te visse em meu lugar.

Se fores não demores,
amigo, diria eu,
se te visse em meu lugar.

Bem triste ficaria pela lonjura,
amigo, diria eu,
se te visse em meu lugar.

Não tardes o quanto costumas,
amigo, diria eu,
se te visse em meu lugar.


Variação sobre a cantiga “Se veess’o meu amigo a Bonaval e me visse” de Bernal de Bonaval.

9.1.13

Cuidei eu do meu coração


Cuidei eu do meu coração
para que não o pudessem forçar
e forçou-o então o amor.

Cuidei eu assim forçado
fechar-me para o proteger,
mas não se cerraram meus olhos

perante a beleza dos seus.


Variação sobre a cantiga “Cuidei eu de meu coraçom” de Osoiro Anes.

8.1.13

Muito triste andas


Muito triste andas e eu
sem saber
da natureza do teu sofrer.

Muito triste andas e eu
a tentar
ir ao encontro desse pesar.

Muito triste andas e eu,
há longo tempo,
oiço sem ouvir o teu lamento.

- Senhor meu, meu mal pior
é assim eu andar sem seres sabedor.


Variação sobre a cantiga “Ai meu amig’e meu lum’e meu bem” de Afonso Anes de Cotom.

7.1.13

Ondas que eu vim ver


Ondas que eu vim ver,
sei bem o que me querem dizer,
só não consigo repetir.

Mar que te fazes bravo,
provo teu choro salgado,
só não consigo repetir.

Ondas que eu vim olhar,
sei bem o que me querem contar,
só não consigo repetir.


Variação sobre a cantiga “Ai ondas que eu vim veer” de Martim Codax

4.1.13

Oração - 3


Ignoro outro sentido
para todo este azul do mar,
mas os meus olhos, todo o corpo,
me impelem a ele, à viagem,
e é o seu sussurro ao meu ouvido
a minha inteira meditação.
Peço-lhe um segundo, uma pausa,
recolho-me em sua casa e não o oiço,
será apenas um sussurro,
este mar, a maré a encher.
Deixa o mar entrar em tua casa,
o teu corpo é água salgada
e navega-se como o reencontro.
De que te adianta dizeres agora
que nada sabes de poesia?
Segura a cabeça entre as mãos,
nada te faltará.
Deixa o mar entrar em tua casa,
faz-te água, sal, areia, reencontro.
Navegas em ti como quem nasce.
É apenas isso, o conhecimento das marés.
Dentro de ti, fonte do meu ser,
encontro a paz tantos dias afastada –
e talvez seja difícil compreender
a singularidade dos meus actos,
mas tu de tudo sabes
e eu nada tenho que te dizer.
Dentro de ti brilha tudo
como brilham os meus olhos,
e o teu ventre é quente,
apaixonado,
eterna consolação de mim.
Não lhes sobra nome.
As águas brancas, feitas de vento
e de barcos frágeis,
pele escamada dos peixes,
foram buscar as asas ao futuro
e trouxeram a manhã
com o barulho dos motores.
Eu sou do tempo da areia,
do vento sobre os corpos
ínfimos em descoberta.
O meu nome é conhecido,
fica em minhas mãos pelas tardes,
veste casaco,
cumprimenta as pessoas da terra.
Penso muitas vezes
nos elementos da natureza,
pensando em como
o corpo dos homens
tão bem explica a existência
de tudo em seu redor.
Muitas vezes eu hesito,
em todas elas sei que existo.
E depois de tudo isto,
um pormenor apenas,
um não saber dizer
o que olhar ou sentir,
uma profunda nostalgia
de todos os tempos,
confusão dos sentidos,
das agendas ou memórias,
telefones públicos
a tocar de madrugada,
dizer que te amo,
dizer o quê,
toda a vida a vida inteira,
depois de tudo isto,
um lugar onde querer ficar.
Ser esta a voz do meu canto,
plena de rouquidão das vagas,
salgada como a história do passado,
rupestre como a pedra,
elevada como o azul
de tanto céu.
Ser esta a voz do meu mundo,
desejo lírico mais profundo,
nervura mais sensível,
a pele feita toda terra,
o coração saber-se luz.

3.1.13

Oração - 2


Pássaros levantam da areia
e vêm teus lábios salgados
feridos de vida,
um permanente ardor dos sentidos
por entre os teus dedos a saltitar.
Vem e recomeça o trilho da tua paixão,
medita de pés juntos, envoltos na areia,
e um pássaro, ao ficar para trás,
permanece, não no céu,
mas nos teus sonhos.
É a mão que acaricia a pedra
e lhe reconhece as feições dos animais mortos.
Bebe-se, junto à areia,
o sangue lavado,
e são as pequenas crianças
quem se ergue do fundo do oceano.
Tudo seria, ainda assim,
infinitamente mais pequeno e útil,
a tal bastaria a pronunciação de um nome,
o erguer de um olhar.
Todas as pequenas coisas
cheias de pormenores inexplicáveis.
Desconheço onde ficaram as impressões
digitais de todos estes homens de pedra
escavados como grutas pelas ondas do mar.
Desconheço a cor dos lábios das sereias
que encantaram, até, os homens mais santos.
Ser daqui é ser de longe.
Tenho o corpo cheio de vento,
os olhos cheios de uma água escura
que escorrega pelas rochas.
Tenho as manhas das marés, a lucidez dos pássaros.
Sou da imensidão dos espaços, da luz.
Não, não há música.
Pede-se o silencioso respeito das matinas,
o leve sussurro do terço
deslizando
nas pontas dos dedos.
Não, não há música.
Apenas o ritmo dos passos
ecoando nave adentro,
as estátuas sorridentes
beijadas pelas lágrimas
que não se podem conter.
Era o queimar das nuvens,
as árvores devastadas.
Pela sombra, as aves, caindo devagar.
A noite azul-cobalto dos sentidos,
o não saber dizer a cor dos teus olhos,
o tom da tua voz.
Os animais felizes junto à porta da entrada. 

2.1.13

Oração - 1


Talvez tenha existido aqui
um arvoredo, antes das dunas,
muito antes de toda esta pedra
levada pelo vento para o mar.
Escuto esta atracção de séculos,
dia a dia,
noite a noite,
este enamoramento
da natureza, sensual amor
dos elementos inanimados.
Preciso de aprender esta nova língua,
um imperceptível movimento dos lábios,
o sol do mar,
o batimento do coração.
Preciso de aprender um modo
de contar esta história,
de viver esta vida
imaginada pela névoa,
quando é de manhã.
Ser daqui é ser de longe,
de onde nascem as ondas,
de onde começam a soprar os ventos,
de onde os homens são sós
e os caminhos pedregosos.
Ser daqui é ser do mundo inteiro.
É ser de nenhum lugar.
Aqui, o deserto,
e depois as vagas
cavalgando dunas e arribas,
inscrevendo à força
a sua violência na pedra.
Perceber isto,
é perceber a beleza que existe
no incompreensível.
Aqui, o deserto,
uns quantos homens
caminhando por entre a névoa
e os dias, encontrando aqui
a magia, o sossego
e a vidência
que o inquieto espírito pede,
e que nunca nenhum homem
alcança,
por muito que se aproxime.
A minha idade é não ter idade
e eu sou do tempo da construção das casas,
dos pés despidos sobre a terra.
Éramos do exacto tamanho
dos dias, apenas
acrescentados de uma fogueira,
pequenas brasas
restando da sopa quente do jantar.
Éramos do material dos legumes
e da fruta pequena
que crescia no quintal.
Os nossos pés eram pães duros,
mas as lágrimas e a dor eram adultas,
carregavam-nos como quem leva
o trigo até à vila.
A minha idade é não ter idade,
pouco sei dizer do que não vivi.
Foi desses dias que me fiz inteiro.