28.4.16

Dilúvio

Depois do dilúvio, 
ficaram os corpos 
marcados pelo chão.

As peças soltas
da maquinaria, 
a falta de remendo 
do tempo passado.

Podemos esperar
o regresso da poeira, 
apenas para a ver
assentar. 

Como podemos
pedir mais chuva
aos deuses
que não nos escutam.

Depois do dilúvio 
e da destruição, 

nada mais importa. 

25.4.16

Dia

Não fosse o 25 de Abril,
hoje era vinte e cinco de abril 
e aquilo que imagino, distante, 
nestas ruas, seria peso
sobre a cabeça rapada
que transporto.

Eu morto ou escorraçado 
numa rua que me é estrangeira
onde estranho também eu seria, 
infeliz combatente
de uma pátria ignorante, 
desmerecida. 

Não fosse, portanto, a Coragem, 
daqueles que souberam dizer
o sim e o não em contraponto, 
e tudo em nós seria minúsculo, 
apagado e descrente, 

como num outro dia qualquer. 

20.4.16

O caminho para casa - da ideia ao livro

No próximo dia 25 de abril de 2016, realiza-se a inauguração do novo espaço da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. Na sua sala de exposições, será apresentada "O caminho para casa - da ideia ao livro", uma mostra que reúne documentação do processo de construção do livro "Pedro Gosta", de autoria de Luís Filipe Cristóvão e Miguel Carvalho, publicado pela Oficina Raquel. 

A simbologia desta data, que marca os quarenta e dois anos da Revolução dos Cravos em Portugal, encerra um percurso que não deixa de estar representado neste livro. Deste uma ideia, poética, sobre o que poderia ser um dia de uma criança, até à transformação dessa história numa chamada ao confronto com a realidade, das pessoas, das vilas e cidades, do mundo inteiro. 

Também não poderia imaginar um melhor lugar para festejar a Liberdade do que uma biblioteca, pelo espaço que ela nos abre para conhecer, entender e modificar o mundo. Por isso espero que esta caminhada feita pelo "Pedro" possa continuar, desbravando novos entendimentos e ajudando outros, como eu, a encontrar a sua casa. 








Texto de apresentação da exposição "O caminho para casa - da ideia ao livro"

O Pedro nasceu só feito de poesia. Tudo o que escrevo vai tentar buscar um referente qualquer real. Tudo o que escrevo violenta esse real inventando-lhe uma nova face. O que eu faço é operar sobre o real, em busca de um ficcional que satisfaça o ponto de chegada de qualquer trabalho literário: o ser poético.

Foi numa altura em que tentava viver nesse espaço radical de transformar tudo em acontecimento simulado. Encontrava algum conforto nessa simulação, como se vivesse uma realidade paralela onde encontrava as respostas que procurava para as minhas questões particulares. Caminhava assim em sentido contrário, uma vez alcançado efeito poético. Do real para a poesia, da poesia para a real. 

O texto em si não me recordo de ter sido trabalhoso. As palavras sempre me as senti poucas e limitadas. Foi sempre no ritmo que procurei dar um certo toque pessoal ao que contava. Já não sei quem me disse que eu falava como escrevo. É uma formulação curiosa, porque me imagina a escrever, primeiro, e só depois a falar. Também é assim que me vejo. Mesmo sem escrever, o texto acontece-me na cabeça. E o que sei é já um fenómeno de intensa revisão em busca de uma musica para o dizer. 

Não é, portanto, tanto o que se conta como a forma encontrada para o contar. E também aí o caminho tem sido algo ímpar. De começar a tentar entender os adultos para descobrir nas crianças algum tipo de resposta. Do querer crescer para entender que, lá chegado, não há melhor forma de ver as coisas do que com a informada inocência da infância. Sempre valorizei bastante as primeiras impressões, ou intuições, embora hoje desconfie de que esse é um atalho para aceitar a minha insegurança perante as minhas próprias opções. 

O livro como existe só acontece, no entanto, com os primeiros elementos enviados pelo Miguel e, sobretudo, com as camadas que ele encontrou descritas no texto. Digo que ele encontrou, uma vez mais, porque eu não as via como elas estavam lá. Via apenas a poesia onde estava um real. Um real forte, militante, participativo. Talvez tenha sido essa ajuda do Miguel quem me puxou a mim. 

Não preciso, portanto, de procurar na poesia uma resposta para o real. Aquilo que eu entendo hoje é que real e poesia coabitam de forma pacífica em todas as coisas, precisando nós, apenas, de um olhar atento que nos faça entender a fronteira de cada uma delas. A melhor resposta, no entanto, é a que nos permite o entendimento da fronteira, não como uma zona de separação, mas como uma zona de eterna festa dos sentidos. 

Escrever este texto é o meu último contributo para o que é este livro. Escrevo-o, agora de forma consciente, para o seu futuro de desconstrução. Porque para fazer livros continuaremos a simular poesia e realidade. Porque para nos entendermos a nós próprios, temos que reviver esses efeitos até que eles se gastem no nosso próprio corpo. Tudo o resto, é matéria de bibliotecas. 

O caminho para casa - da ideia ao livro
Exposição a partir do livro "Pedro Gosta"
de Luís Filipe Cristóvão e Miguel Carvalho

Biblioteca Municipal de Torres Vedras
de 25 de abril a 30 de junho de 2016

17.4.16

Sozinho ao sol

Nascido nos setentas
cultivado nos noventas
e ainda te espantas
com as muitas cores
do mar.

4.4.16

(Mais uma) Última hora

Tudo por menos da sua metade
anunciado com o dobro do tamanho
da importância devida.

Pois quanto mais o mundo treme
com o choque daquilo que pensa descobrir
melhor se caminha pelos labirintos.

Nunca me ensinaram a ser cínico.
Foi sempre o exagero com que soa a "verdade"
que me fez duvidar de ainda mais coisas.

Até de mim mesmo.

1.4.16

Os doze trabalhos do linho

Os doze trabalhos do linho
não são
os doze trabalhos de Hércules.

Semear, arrancar, ripar, enriar,
secar, malhar, macerar, espadelar,
assedar, fiar, barrelar, dobrar.

Oxalá saísse das minhas penitências
tão limpo
quanto a toalha de linho sobre mesa.