27.1.16

Sexto andar

Tinha cara de desconfiada, mas podia ser só calada, ou então não se interessar minimamente por ti. Talvez fosses tu que pensasses demais. Cruzavam-se diariamente no corredor do prédio em que ambos trabalhavam. Ela a caminho do sexto andar - umas duas vezes subiram juntos no elevador e tinhas registado o andar dela -, tu entre o quarto e o quinto andar. Talvez não fosse muito normal que tu estivesses tantas vezes num corredor onde nada tinhas a fazer, mas fechavas-te na casa-de-banho do andar só para que o segurança não se perguntasse porque andavas para trás e para frente sem entrar em porta alguma.

Ela tinha cara de desconfiada, mas era uma desconfiada muito bonita. Um dia ainda haverias de lhe dar os bons dias ou boas tardes, tentar perceber como seria a voz dela, se ela já alguma vez tivesse reparado em ti. Tu ias a pé do quinto para o sexto andar - essa coisa de não fumar no varandim de entrada do prédio roubava-te privilégios, já tentaras ficar uma ou outra vez por ali à conversa, mas o teu diretor perguntara-te que, se o cigarro estava a acabado, podias subir (e sim, ele sabia que não fumavas) - quando te cruzaste com ela nas escadas. Ela pareceu surpreendida. Achava que trabalhavas no sexto andar.

25.1.16

As chaves

Em cima da mesa ficaram esquecidas as chaves de casa. Não sabes bem a que horas deste por isso, talvez à hora do almoço, quando procuraste a carteira no fundo da mala e não ouviste o tilintar habitual. Estavas longe de casa e não sabias bem a quem ligar ainda durante o dia. Quando chegasses à tua porta o mais provável era também já ser tarde demais para encontrar quem te pudesse ajudar para entrar em casa.

Em cima da mesa ficaram esquecidas as chaves de casa. A tua casa, aquela pela qual te punhas a caminho de um escritório a mais de trinta quilómetros para a conseguir manter. Tinhas demorado muito tempo até conseguir sair de casa dos teus pais, farta que estavas de ter a vida assim pendurada nas opiniões de quem achava que te estava a criar, mesmo quando já caminhavas para os vinte e sete anos. Telefonaste ao teu antigo namorado. Perguntaste-lhe "queres jantar hoje"? Ele disse que sim.

14.1.16

Palavras

Deixa de temer as palavras, ou a sua incongruência natural, deixa de procurar nelas uma resposta para os teus males concretos. A resposta está sempre na desorganização, algo caótica, dos elementos. O esforço para encobrir toda e qualquer filosofia, alguém que imagine que o mundo é apenas ação e nunca teoria, não é apenas inútil, é também causador da cegueira das sensações. Deixa de temer as palavras, sê livre, lê. A resposta está lá, sempre esteve lá, escondida dentro de ti.

13.1.16

Equipas

De seres individualistas estão as equipas cheias. Pensas nisto e sorris. Na tua cabeça, as coisas acontecem sempre sem acasos, porque todas as surpresas são naturais. Argumentas pouco pela solidez dos factos, sabes bem que estes se cambiam em todos os mercados, a qualquer hora do globo. Olhas assim o coletivo como uma soma improvável de soluções para os problemas que não deixam de te surgir. A soma improvável que, no final de contas, é sempre superior à conjugação das suas partes. Sorris. O caminho certo.

12.1.16

Pedras

Subiam das pedras os odores do caminho que ainda te faltava fazer. Nos pés ficava marcada a inconstância do lugar, pouco fixo que estava, contigo assim, a adivinhar. Subiam das pedras, também, as humidades frias de uma noite inteira a olhar vazios, a calcular medidas, a inventar sobriedades. Mas ainda assim te levantavas, ainda assim seguias. Pelas pedras.

11.1.16

Línguas estrangeiras

De tempos a tempos, aquela vontade de aprender línguas estrangeiras. Por causa de uma música, de um livro, de uma notícia. Aquela vontade de deslimitar o cérebro perante os signos e sinais de uma realidade que te é alheia. Ou será mesmo? Acaso não acabarias por te encontrar mais cómodo e confortável se aprendesses uma nova língua, uma nova forma de organizar o mundo. De tempos a tempos, aquela vontade de aprender a ser o mesmo de outra maneira.

7.1.16

Segurança

Sempre preferi escrever sem destinatário, o meu leitor era leitor nenhum. Aliás, deixei de escrever quando percebi que me liam - e se me lêem, lêem-me mal - e fantasiavam por cima de coisas que eu não tinha dito. Tudo bem, se não me levassem junto. Guarda-te na sombra, desconhecido. É assim que nos mantemos em segurança.

6.1.16

Tento

Se tento não olhar-te nos olhos é porque sei como te olhar nos olhos - quando me esqueço ou descontrolo, aí estou eu, à tua porta, pronto para te magoar com carinhos e abraços. Se tento não dizer-te palavra é porque sei que palavra te dizer - a boca aberta, a língua em fogo, o corpo destacando-se da alma para melhor a absorver. Se tento é porque não tento. Se não tento, estou tentado. Tentado a tentar.

5.1.16

Terrinha

A caminho da terrinha em cima de uma música folclórica, destoando notas, contando dinheiro, um barbudo que fica sempre mal nas fotografias. A caminho, a caminha, coisas próximas de tão afastadas - aquele tempo em que eu simplesmente não dormia fora de casa, ainda que a casa não fosse minha, ainda que nem me sentisse bem nela, aquele tempo - e pensar que acelerei em estradas onde agora nascem filhos de pais que não sou eu. A música, ainda a música, a repetir-se.

4.1.16

Tempos livres

Corrompo-me um ano mais, deslizando lentamente pelas páginas em branco de um qualquer ficheiro a que chamo livro no futuro. Aprendi a conjugar no inexistente, mas condicionam-me as poucas palavras que sei. Repito-me? A toda a hora, nessa busca de estar sempre ocupado com alguma coisa que não me ocupe realmente. O diabo está, de facto, nos tempos livres.