27.5.16

A prancha mais alta

Todos os anos ia a turma
em romaria até à Piscina
do Vimeiro a queimar a pele
para marcar entrada no verão.

Os mais afoitos subiam à
prancha mais alta para
ensaiar saltos e bombas
que espantavam as miúdas.

Tu davas aos braços a fingir
que sabias nadar entre as margens
onde o ainda tinhas pé,
medindo o esforço na invisibilidade.

Todos os anos ia a turma
em romaria nos autocarros
laranja e muitos sem saber
que bilhete comprar, onde sair.

Os mais afoitos cantavam e
gritavam para incómodo de
umas velhas a caminho de casa
depois da ida ao doutor.

Tu ficavas calado e calado ficaste
quando um dia mais tarde
subiste, temeroso, as escadas
até à prancha mais alta.

Foi já dentro de água que sentiste
que tanto tempo a ir ao fundo
tornava mais resistente
a vontade de respirar.

22.5.16

Inspeção Periódica

Meço mais a intensidade das palavras
do que a dos faróis médios
e os níveis do óleo
não me interessam tanto
como a maneira de dizer as mesmas coisas
com frases diferentes.

Aliás, os poemas já me levaram
muito mais longe
do que qualquer veículo automóvel,
mas nunca nenhum guarda republicano
me questionou acerca
da ficha da última inspeção poética.

E talvez devesse.

21.5.16

Homem bom

Se encontramos uma estrada
logo queremos que ela nos leve. 
Pouco importa que os lugares
sejam tão diferentes
se vividos de noite ou de dia.

Por exemplo, encontrei uma casa
abandonada num terreno retangular.
Tinha janelas, mas não tinha paredes.
Tinha ervas, lá dentro algumas folhas.

Se encontramos uma estrada
logo nos imaginamos a fazer moradas.
Pedem-nos cartões, identificam-te, 
tu sorris, encolhes os ombros, 
tanto te faz.

Por exemplo, encontrei um homem bom
e caminhei com ele pela cidade.
Tinha palavras dóceis, as suas histórias.
Tinha um bilhete só de ida para a morte.

Se encontramos uma estrada
logo nascem poemas pelos dedos.
Na boca recordas frutos vermelhos, 
mas na memória só tens gelo, 
algum gás. 

Por exemplo, sabes a que horas vais acordar
amanhã? E depois? Depois?
Há um sorriso desenhado em cada ausência. 
O mundo ainda nem está para começar. 

Medo de escorregar

Vestiste as roupas dos anos oitenta.
Perdido nos intervalos instrumentais
percebes que a primavera é só ausência,
gente a pensar em ti semanas.

Foste aos setenta trabalhar.
Olhaste o chão sem rasto de sangue
mas as paredes ainda falam 
e as árvores, hum hum, as árvores.

Chamam-te Fausto, meu capitão.
Não voltas ao lugar onde foste triste,
bem podes abraçar quem te apetecer.
A língua é uma ilusão perecível.

Dentro da tua cabeça és sempre o mesmo,
sabes todas as letras de cor.
Inventas palavras para rimar entrelinhas,
ficas para ali a dançar sozinho.

Tens dezoito anos, trinta e sete,
os teus amigos falam bem melhor que tu.
Sobes as escadas, cansas-te.
Desces as escadas, medo de escorregar.

19.5.16

O Caminho para casa - da ideia ao livro (em imagens)

A exposição em imagens.









Lembramos que se encontra aberta ao público na Biblioteca Municipal de Torres Vedras até 30 de junho, estando depois em elaboração a realização de exposições noutras localidades do país.

Problemas


O problema de quem escreve
é bem diferente
do problema de quem lê.

Quem escreve procura explicar
o que não existe
usando, para isso, a ferramenta
que a todos pertence. 

Quem lê aceita ou recusa
aquilo que existe
usando, para isso, a ferramenta
que ele próprio construiu. 

18.5.16

Os fracos vencerão

Passas uma tarde inteira a pensar
e isso não é coisa que vá mover o mundo
- convencem-te aqueles fazendo contas,
silenciosos, à exploração dos dias.

Quiseste, sim, ser como eles,
calçar sapatos apertados, vestir
camisas engomadas, subir elevadores
para o escritório, mas (havia um mas)
ainda assim, pensavas.

Por certo ainda duvidas.
Não entendes toda a força
resistindo nessa incapacidade
de encontrar a redenção
na passividade.

Passar uma tarde inteira a pensar
talvez seja mesmo o que faz mover o mundo
- e enquanto se fazem de fortes os medíocres,
sabes que os fracos vencerão.

10.5.16

Historiadores

Andarmos muito esquecidos
de tudo o que nos aconteceu
antes de sermos o que somos
parece agora normal.

Há quem me diga que é passado
e pouco importa o lá atrás.
Outros, por não serem ainda nascidos, 
que não teriam como o saber.

Por isso andamos esquecidos,
repetimos os mesmos erros, 
tomamos por brilhante novidade
aquilo que esteve sempre a acontecer.

Ignoramos, infelizes e descontentes, 
que dos livros não vêm apenas 
realidades distantes, que até a nossa
reles vida necessita de historiadores.

5.5.16

Espelho

Como quem se atira
de encontro a um espelho, 
aqui me surpreendo
na antecâmara da minha loucura.
Vai formosa
e insegura.

Eu recolho as palavras
quando nascem da tua boca
e colecciono cada gesto
inventado da tua ternura.
Tão selecta
e bem segura.

Sinto-lhe o calor
mas por chegar o verão,
confundo-me imprudente
aprendiz nesta ciência.
Que é formosa
e tão segura,

no final da inocência

4.5.16

De um livro aberto numa cadeira do hospital

De um livro aberto
numa cadeira do hospital
saem vozes em 
línguas estrangeiras. 

Entendo-as sem esforço algum.

São os olhos de um amigo
e as suas palavras dóceis,
estranho hábito de quem se gosta
sem nunca precisar de confissão.

De um livro aberto
numa cadeira do hospital, 
viagens no tempo e 
roupas confortáveis. 

Mergulho em mim sem receio.

E ser eu ou ele quase
nada importa ao poema, 
hábil certeza de quem passa

sem precisar de ver os passos no chão. 

3.5.16

Corredores

Era dia do 
santo dos heróis humildes, 
mas as memórias ainda
rasgavam músculos cá dentro.

Eu a pensar
nos efeitos que as palavras
têm no cérebro e na boca, 
metal amargo feito sangue.

Era dia do
santo dos ricos arrependidos,
mas os que sentem fome
desejavam-lhes os lugares.

Eu a pensar 
nas dores de crescimento,
nos efeitos provocados
sobre a coluna vertebral.

Era um dia
novo e singular. 
Um dia ainda
por encontrar.