31.1.12

Viagem

Algumas pessoas sorriam-lhe, como se o reconhecessem.
Outras pessoas ficavam muito sérias, como se o reconhecessem.
Havia quem o censurasse, com o olhar, como se o reconhecesse.
E até quem não o reconhecia.

Então, o Rapaz respirava fundo e sorria.

30.1.12

Palavras

O Rapaz esforçava-se por encontrar as palavras certas.
Passava a maior parte do tempo em silêncio.

27.1.12

Caminhar

Cada passo é sempre um passo, mas ainda é só um passo.
Muitos ficam parados.
O Rapaz caminha.
Mesmo que devagar. Caminha.

26.1.12

Calado

Ficavam à espera que o Rapaz dissesse algo.
Ele ficava calado.
Não eram dias, nem semanas, nem meses. Anos. Anos.
Ficavam à espera.
Ele calado.

25.1.12

Nada

Das viagens do Rapaz, pouco há o que acreditar.
Os seus relatos eram sempre constituídos por mentiras e invenções.
Alguns liam-lhe factos e construíram quimeras.
O Rapaz caminhava pela rua como se nada fosse.

24.1.12

Estradas secundárias

O Rapaz sabia o que fazer das intuições.
Conhecia as pessoas, porque as pessoas são como frutos, nascem de ramos semelhantes e acabam por ser todas parecidas.
As intuições são as formas de ler cada pessoa que nos acontece.
Não era tempo de se ficar perdido em estradas secundárias da vida.

23.1.12

Inverno

E o Rapaz dizia, o frio, o frio, todo o inverno o frio.
O tempo não mudava e o Rapaz dizia ainda,
a solidão, esse cavalo à solta.
Era o tempo em que a noite era a mais forte das sensações.

20.1.12

Dormir

Pois é largo o tempo do Rapaz, mas mais largo será o tempo que nos resta.
Não temamos, pois, o fim das histórias.
O Rapaz por aí vive.
A meio caminho entre o antes, o agora e o depois.

19.1.12

Encontrado

Não quer mais perder os sentidos, o Rapaz a caminhar pelo túnel do metro. Caras estranhas que se fixam na sua, como se o reconhecessem.
Falta-lhe o ar quando se sente encontrado.

18.1.12

Pessoas

Bebeu de um dos copos em cima da mesa, disso tem ele a certeza.
No outro canto, o Rapaz sorri.
Quantas pessoas existem em mim, pergunta de si para si.
Certas respostas são demoradas e pouco credíveis, imagina.

17.1.12

Ficar

Não cabem nas mãos do Rapaz todas as soluções do mundo. Viajar entre a infância e a terceira idade é complicado.
Talvez por isso ele insista em comprar sempre bilhete de ida e volta para a viagem.
O Rapaz tem medo de ficar.

16.1.12

Perceber

Todos os dias são uma oportunidade para um começo com as palavras.
Isto surgiu na cabeça do Rapaz há muito muito tempo, era ele bem pequenino.
Durante grande parte dos dias entre esse momento e o agora, o Rapaz não soube o que pensar desta frase.
E depois, de repente, percebeu.

13.1.12

Coisas

Já vos falei das coisas do Rapaz. Houve um tempo em que foi pequeno, um outro tempo em que foi grande e muitos outros tempos em que teve, a cada vez, o seu tamanho.
Tentar definir o Rapaz é um trabalho sem fim.
Falar-vos-ei de mais coisas do Rapaz.

12.1.12

Sonhos

Tão pequeno e sem falar, já sonhava o Rapaz.
Umas semanas, sonhos doces e grandiosos, prometendo-lhe futuro.
Noutras, apenas um sono agitado, um prolongamento do estar acordado, vendo todas as coisas como elas são mas não parecem ser.
Já sonhava o Rapaz, e com sonhos ia construindo a sua história.
Que era pequena, ainda, ali.

11.1.12

Carnes

Frágil nasceu o Rapaz.
E durante o tempo dos leites, de poucas carnes era, pele e osso apenas.
Apressaram-se os adultos a receitar-lhe açordas, pedacinhos desfeitos de pão, uns primeiros fios de carne.
Frágil nasceu o Rapaz, mas não para ser frágil nasceu.
E não muito depois, era já farta a sua constituição.

10.1.12

Olhos

Já vos falei dos olhos do Rapaz.
Grandes, pareciam captar mais do que a realidade tinha para oferecer.
Talvez os que o rodeavam não reparassem na força daquele olhar.
Talvez pensassem que os olhos são isso mesmo, pequenas caixas de ver o momento, não máquinas de registar.
O Rapaz tinha olhos grandes, olhos que registavam.
Ainda não vou disse tudo sobre os olhos do Rapaz.

9.1.12

Não falar

No primeiro ano, o Rapaz não falava.
Nisso, era como todos os outros bebés.
No entanto, à sua volta, todos davam as suas opiniões.
Acertavam-lhe projetos, adivinhavam-lhe feitos, não lhe davam descanso, para toda a eternidade, deus o benzesse.
O Rapaz tinha os olhos grandes, não falava.

6.1.12

Enganados

Desde cedo o Rapaz começou a ser único.
Único na forma como abria muito os olhos e parecia ver, mal tinha nascido.
Único na forma como se alimentava, como se uma fome universal viesse dentro de tão fraca composição de carnes.
Único na forma como parecia articular palavras, discurso, nos leves gemidos que se confundiam com o choro nos seus dias iniciais.
Os adultos olhavam-no e diziam-no único, como só numa família de únicos se poderia ver.
Desde cedo o Rapaz pouco percebia do mundo.
Mas percebia que aqueles que mais perto de si estavam nesse mundo, viviam enganados.

5.1.12

Único

O Rapaz nasceu para ser único numa família de únicos.
Pai e mãe eram filhos únicos, no seu único casamento, e todos os seus avós eram filhos únicos também.
Para ele adivinhavam uma vida de coisas únicas, todas elas de compostos simples, mas memoráveis.
O Rapaz nasceu para ser único.

4.1.12

A história do Rapaz

Vou contar-vos a história do Rapaz.
Embora não tenha o estilo, o verbo, nem a condição para o fazer bem, faço-o porque a conheço.
Poderia tentar começar pelo início, mas aceito as minhas limitações.
Assim, começando a história pelo dia do nascimento do Rapaz, não há como enganar logo na primeira frase da história. Faço-o in media res. Foi assim que nasceu o Rapaz.