28.2.11

Cresce, rapaz 1

“Cresce, rapaz” – disseram-te uns quantos e não acreditaste. Já tinhas nascido grande e completo, pouco mais havia a mudar. Foste fechando as orelhas até que o coração se sentiu apertado e quis explodir. Descobriste o que era o medo, mas, pensavas tu, não era ainda o tempo de crescer. 

24.2.11

Digestivo 4

Não era para aqui que eu vinha, foi aqui que eu cheguei. O herói que eu quis ser nada tinha deste herói que hoje sou.

Não me faço das noites, das dores, dos pesos, do sangue, dos que nada mais têm para dar.
Faço-me dos dias, dos remédios, da leveza, da limpeza, dos que querem, sempre, dar algo mais.

Não era para aqui que eu vinha, foi aqui que eu cheguei. Não era bem um homem que eu queria ser, mas é um homem aquilo que sou.

23.2.11

Digestivo 3

Rapidamente e sem anestesia, disse ele. Tremi. Mas em nenhuma das poucas coisas que me passaram pela cabeça entre esta frase e o restante discurso estava aquilo que se seguiu. Nunca, mas mesmo nunca, esperamos que nos anunciem uma sentença de morte. Daquelas disfarçadas de esperança, mas de morte. Daquelas que podem demorar anos e anos, mas de morte.

Podia escolher ficar do lado da força e da alegria. Mas eu sempre fui daqueles que contemplaram a morte da varanda, como quem vê passar, silencioso e quieto, a procissão. Não sou feito da matéria que enfrenta esse touro pelos cornos. Resguardo-me na expectativa e nas palavras. Sem anestesia. 

22.2.11

Digestivo 2

Sempre chega um dia onde percebes o que é um círculo. Um círculo é onde os componentes se respeitam. Onde as partes se conhecem. Onde um olhar chega para perceber o que está bem, o que está mal. Um círculo é onde há lugar para crescerem vidas. A tua vida. O círculo não é apenas o que está próximo. É o que está dentro. E até o que está dentro pode estar em muitos lugares.

Sempre chega um dia onde percebes que o teu círculo é muito pequeno. E depois um outro dia, onde encaras que o teu círculo é ainda mais mínimo. Inspiras forte, piscas os olhos. Custa-te um pouco. Mas segues em frente.

21.2.11

Digestivo 1

Pessoas só com um lado. Sorrindo e enganando, só com um lado. Sujando, gozando e cuspindo nos outros, só com um lado. Inventando a sua própria vida como lhes convém, só com um lado. Encontrando no corpo dos outros uma escada, só com um lado. Exibindo a sua riqueza e a sua estupidez, só com um lado.

Um lado como uma parede de esferovite, frágil, inconstante, sem qualquer valor. Um lado como uma peça de plástico barato. Um lado. A esconder a sua própria fealdade. A sua desrazão de ser. Pessoas.

18.2.11

O Afonso foi à Guarda

O Afonso foi até à Guarda, a convite da Livraria Jardim.

Neve na Guarda
Foram três dias com muito frio e neve e visitas a seis escolas. Na segunda-feira de manhã, começamos com duas sessões na EB Espírito Santo, às portas do Centro Histórico da Guarda. Os alunos tinham feito algumas ilustrações sobre o “Afonso e o Livro”, algumas delas bem perfeitinhas, quase iguais às da Amélie. Da parte da tarde, a professora-bibliotecária Margarida levou-me até à EB de Alfarazes e depois ao Jardim Infantil do mesmo bairro. Com as turmas do 1º ao 4º ano tive uma sessão excelente, já que todos tinham perguntas muito interessantes sobre o livro, algumas delas bem complicadas de responder, como por exemplo um menino que me perguntou “porque tinha o Afonso o tempo a seu favor?”

Em Famalicão da Serra
No segundo dia comecei com sessões no Centro Escolar de Gonçalo, onde os meninos estavam muito interessados nas minhas viagens ao estrangeiro e também nas línguas em que falo. Uma das meninas presentes até me pediu para lhes falar em francês. Na biblioteca desta escola, tive também oportunidade de saber que, devido ao muito frio, havia muitos meninos com tosse, o que poderá vir a ser um bom tema para uma história. Ficou guardada a história na cabeça, e os meninos de Gonçalo com vontade de entrarem num livro. Depois do almoço, seguiu-se uma viagem até Famalicão da Serra, onde numa escola antiga e em obras, os meninos ouviram com muita atenção a maneira como o Afonso aprendeu a gostar de ler. Como nem todos estavam muito convencidos, algumas das crianças ficaram com a missão de lerem um livro, pelo menos “a cada quinze dias”.

O desenho da Ema (JI da Sé)
No último dia, a manhã trouxe um nevão ao ponto mais alto da Guarda. Ainda assim, e apesar de alguns pais “terem escorregado”, como me disse um menino chamado Rodrigo, fomos até ao Jardim de Infância das Lameirinhas, onde falámos de animais, de bruxas e do DVD do “Panda vai à Escola”. Para além disso, e liderados pelo Artur, que tem 5 anos e muita imaginação, criámos a história de uma menina chamada Leonor, que viajou até Paris para visitar a avó. Enquanto eu dava alguns autógrafos, o Artur ainda fez uma ilustração da Leonor a apanhar o avião. A última paragem desta viagem pela Guarda foi no Jardim de Infância da Sé. Tive uma grande surpresa, já que os meninos da Sala dos 5 anos, com a educadora Amélia, tinham feito uns belos retratos do escritor, a partir da descrição que aparece no livro. Depois disso, tive ainda tempo para visitar uma das Salas, e descobrir tudo aquilo que estes meninos fazem no seu dia-a-dia, para além de ter descoberto que andam a preparar um livro ilustrado com provérbios.

Foram três dias cheios, onde conheci imensos meninos e meninas, e onde o Afonso andou a ser descoberto pelas terras da Guarda. Ficou a promessa de voltar, com o Afonso e outras histórias, num futuro próximo. 

10.2.11

O Amor e a Violência



Existem quantas maneiras de partir para uma guerra? Quantas formas de dizer as mesmas frases uma e outra vez? Eu, que tantas vezes optei pelo silêncio, solto agora um grito intenso do meu peito. 

Existem quantas línguas de fogo no incêndio dos meus olhos? Quantas liberdades reparei eu uma e outra vez? Eu, que nunca antes pisara assim vidro quebrado, descalço-me pela noite escura adentro. 

Existem quantas maneiras de esquecer o nosso futuro? Quantas peles arrancadas ao músculo original do homem? Eu, que nunca arriscara cantar em frente a um público, entrego-me assim ao amor e à violência. 

9.2.11

Difícil

Tornar as coisas difíceis, evitar sempre o caminho mais óbvio. Estar constantemente perante a prova de si mesmo. Não escolher o que permite mais. Querer o que promete melhor.

Escolher, escolher, escolher, escolher. Exigir, exigir mais. Tornar inacessível, complicado. E no fim do dia regressar a casa bem mais leve, bem mais eu.

Tornas as coisas difíceis. Perceber como os outros fazem, mas querer diferente. Afinal um percurso é poder saber todos os lados do problema. Tu queres saber a solução. A solução. 

8.2.11

Uma questão de rimas

Visto à distância, talvez o livro da minha infância que mais me tenha marcado terá sido um livro grande, do qual não me lembro o nome. O que havia dentro desse livro de imensas páginas? Cantigas, rimas, adivinhas. Não sabia eu na altura, mas aprendi com esse livro muito daquilo que hoje me interessa sobre palavras, ritmo e tradição. Estas três ideias têm andado muito na minha cabeça e é à volta delas que eu vou desenvolvendo o meu trabalho na escrita. 

Pensando bem, essa influência revelou-se desde cedo. Lá por casa da minha mãe existem ainda muitas provas, em antigos cadernos da escola primária, da minha queda para a rima, já em tenra idade. Não posso dizer que a rima, hoje, seja algo que eu produza em quantidade. Mas na noção de rima está incluída uma outra noção muito mais importante, a de ritmo, e essa sim, é fundamental no que eu faço. Um texto sem ritmo, quem o poderia ler? Não eu. Seria incapaz de apresentar um texto sem ritmo, fosse a quem fosse. Daí a importância desse livrinho.

Outros livros foram importantes na minha infância. O primeiro livro sem ilustrações que eu li, nas Férias de Natal de 1985, as colecções de livros de aventuras que devorei até aos dez anos. Mas aquelas rimas e cantigas, essas sim, ficaram comigo para o resto da vida. 


publicado no suplemento Bruxinha do Jornal Região de Leiria de 4 de Fevereiro de 2011

7.2.11

Fevereiro

Manhã de Fevereiro. A minha cidade é só areia e sol. O corpo renascido pelo beijo do sol. As lembranças todas quente. As palavras todas alegria. 

Manhã de Fevereiro. Depois de meses a lacrimejar o inverno. Depois de dias a repensar os espaços. Um só raio de sol e todas as certezas do mundo.

Manhã de Fevereiro. E de repente a cabeça criando madrugadas. Dentro da boca uma história que cresce. O corpo que se aceita tal como é. Matinal e solar. Apenas e só. 

4.2.11

Missão

O poeta põe a mesa. Dispõe pratos, copos e talheres, criando uma ordem que respeita a tradição passada, tanto quanto a necessidade presente. O poeta traz a água, traz o pão. Coloca as cadeiras nos lugares, tal como as bases onde assentará o tacho da comida. Finalmente o poeta dá por terminada a sua missão.

Com a mesa posta, o leitor chega e senta-se. Percebe o que foi montado, prova a comida. Deixa que os alimentos temperados viagem um pouco dentro da sua boca. O leitor sabe que são poucas e muito leves as novidades que o poeta pode trazer. Mas saboreia como se cada manjar fosse o primeiro.

Só o leitor sabe que o poeta nunca pode dar por terminada qualquer missão.

3.2.11

Sal

Tirar, das coisas, o sal. Despir o mundo. Ter a tentação de lhe reconstruir a nudez. Tirar, das coisas, a sua essência. Ora aí está a ambição de quem escreve.

Guardar dentro de si todas as raízes. Recolher na pele as sensações. Aprender o vagar de cada passo, de cada olhar, de cada encontro. Ora aí está a ambição de quem escreve.

Criar, de cada momento, uma oração. Palavras que se encontrem como sussurros. Saber a ciência dos silêncios e das respirações. Ora aí está o início do poema.

2.2.11

Pequena morte. Pequeno prazer.

Um pequeno prazer. Chegar ao escritório e ver sobre a mesa um embrulho bem magoado por uma longa viagem - de tanto tombo, já o haviam coberto de plástico, ao original envelope de papel. Dentro, a revista pequena morte, com o tema futebol-arte, editada por Fernando Miranda e Raquel Menezes, da editora Oficina Raquel.

O pequeno prazer. Percorrer-lhe as páginas até lhe encontrar o meu nome. Estudar-lhe as letras, reler os textos enviados, à procura desse tempo que já passou mas ficou marcado no papel. Sorrir, perante as pequenas tonterías que sempre ofereço a quem me pede uma nota biográfica.

Mais que o prazer. Encontrar ainda livros do valter hugo mãe e do Luís Maffei, no envelope chegado do Brasil. Sentir-lhes a proximidade que textos e afectos permitiram. Ter a perfeita noção de que nada disto é mais importante que uma vida, alguma saúde, algum sossego. Ter a gloriosa sabedoria de que encontrar, nestas pequenas coisas, uma boa razão para ser feliz.