31.1.11

A força

A cada um de nós a cruz que lhe couber. Um casal feliz, com uma vida onde tudo faz sentido, detém, à sua volta, um mundo que se desfaz. Amigos próximos que estão sozinhos e entregues a uma depressão crescente, outros que lutam contra a doença, um irmão que encontra a morte da sua mulher. Um casal feliz que, na sua própria casa, não evita ser alvo da inveja de todos aqueles que lhes querem bem. 

A vida é mesmo assim, penso sempre eu perante cada filme de Mike Leigh. E ao mesmo tempo que há uma leveza que sobressai das imagens dos filmes do britânico, o peso dessa realidade sai connosco da sala e segue caminho dentro dos nossos bolsos, onde, mais tarde ou mais cedo, o haveremos de reencontrar. Sobre o que é este filme? Sobre o envelhecer ou sobre a felicidade? Sobre a solidão ou sobre o inferno que são os outros? 

Os protagonistas deste casal enfrentam tudo com o sorriso fácil e a reacção implacável quando algo faz perigar o seu equilíbrio. No final de cada dia, são eles quem dorme sossegado. São, sem dúvida, eles quem está satisfeito com aquilo que tem. Pode pensar-se que tiveram sorte. Eu prefiro acreditar que tiveram força. 

28.1.11

O Afonso foi à televisão

Numa casa bem bonita, por sinal, numa sala inventada para escritores, o Afonso foi à televisão.
Está tudo aqui.

27.1.11

Ajuste

Não se trata de ajustar contas com o passado, trata-se mais de reflectir sobre o futuro. Perceber como se te cola uma imagem que até tu, em certo tempo, acreditaste ser realmente a tua. Mas, na verdade, nunca foste um dos poetas do dia-a-dia, nem das frases despidas, nem dos sentimentos urbanos. A melhor prova de tudo isso é  teres estado sempre afastado do núcleo de quem o defendia. 

No entanto, a exposição é inimiga da compreensão. O que mais foi lido terá sido o que de mais próximo desse grupo produziste. Um conjunto de poemas ao qual não darás grande préstimo, a cada releitura que fizeres da tua obra. Estás agora bem mais próximo do ponto onde começaste, com todas as experiências dos livros publicados, dos sonhos, relativamente adolescentes, também liberto.

Resta-te continuar, não a pintar a vida como ela é (coisa que a bem da verdade nunca muito te interessou), mas sim a vida como ela te aparece (e tu bem dizias, há cinco anos atrás, o quanto a tua poesia era míope). Deixaste tu de ver durante os tempos, cegando assim a leitura de quem vem desprevenido. Não há volta atrás. Trabalha agora com o que tens. Pois bem sabes que não há caminho sossegado até ao cais. 

26.1.11

A beleza deste mundo

Aprender que um romance pode utilizar o discurso directo como se lhe fosse natural. Aprender que uma vida inteira pode ser uma pequena história, saiba-se escolher o que realmente importa. Aprender que um homem banal pode ser agente de grandes feitos (positivos ou negativos). Aprender a pensar balcânico, sobretudo. 

Dragoslav Mihailovic ensinou-me tudo isso nas 112 páginas desse livro. Um livro que não pude parar de ler mal comecei. Se alguma coisa podemos aprender sobre o ser humano, neste livro, é que o prazer da casa só se nota na distância. Quando estamos dentro dela, assumimos-lhe as responsabilidades. Como se fosse uma obrigação de sangue, talvez. Mas quando saímos, percebemos que ali havia uma forma de viver que não existe em outro lugar. 

O "Campeão" deste livro sabe, ainda, que o sossego é algo que nunca se pode encontrar. Por muito que nos obriguemos a delinear um objectivo e a atingi-lo. O passado não se arruma, é algo que poderá vir sempre a perseguir-nos. Seja por vontade dele, seja pela nossa capacidade de vivermos sempre tudo dentro da nossa cabeça. O "Campeão" deste livro tem, no entanto, a coragem de dizer como aconteceram as coisas. Talvez com a esperança de fechar uma porta, sem necessariamente abandonar o lugar onde se está preso. 

A cena mais intensa deste livro ensina-nos uma outra lição. Moribundo, o "Apache" usa as suas últimas forças para perguntar pelas abóboras em flor. Depois, cala-se para sempre, deixando partir em liberdade o seu próprio carrasco. Seguir para o outro mundo a querer saber da beleza deste. Esta deveria ser, sempre, a nossa filosofia. 

25.1.11

Uma outra realidade

Há dias, uma editora dizia-me ansiar "pelo dia em que deixe de haver livrarias, que toda a gente compre livros na Internet". O argumento era duplo: primeiro porque ela compra tudo o que lhe interessa na Amazon, segundo porque os livreiros, ora não pagam, ora devolvem os livros danificados. Fiquei de tal forma chocado que me faltaram as palavras para responder. 

Num mundo sem livrarias, a maioria de nós não teria o que ler. Não consigo sequer imaginar o que seria não ter uma livraria por onde passear. As livrarias são os lugares onde sempre me senti mais à vontade. Eu também compro muitos livros na Internet, também tenho as minhas reservas em relação a muitos espaços onde o comércio dos livros acaba por ser uma forma mascarada de maltratar quem escreve e quem lê. Mas encaro o dia do encerramento da última livraria do mundo como o primeiro dia de um mundo onde eu não terei o mínimo gosto de viver. 

Tendemos sempre a sugerir a resolução das nossas frustrações com medidas de impacto radical imediato. Isto vale para o mais analfabeto, como para o mais intelectual dos humanos. A nossa mesquinhez é impossível de disfarçar. Nunca pensamos que a solução das coisas poderá advir do nosso esforço em contribuir para uma solução positiva. É sempre melhor eliminar o inimigo (por muito que a reflexão sobre esta hipótese a aproxime tão perigosamente de outras inesquecíveis "soluções"). 

Infelizmente, também acho que as livrarias irão acabar. E, pouco depois, os livros seguirão esse caminho. A ausência de rentabilidade do pensamento alternativo fará com que esse pensamento deixe de ser editado, passando a ser fruto do empreendedorismo dos seus autores (em blogues, em pequenas edições de autor, ...). A ausência de edição desvalorizará, por completo, a sua existência. Seremos uma sociedade autista, a comprar à distância sem perceber os problemas da nossa própria freguesia. 

A única esperança é que tudo isto aconteça, primeiro, num livro. Num livro que possa ser lido, pensado e discutido. Num livro que, depois de fechado, abra o caminho para que se a realidade seja diferente. 

24.1.11

Seremos poucos?

Diz a sabedoria popular que "palavras leva-as o vento". Talvez lutemos contra isso quando insistimos em grafá-las no papel, imprimindo-as em livros que, esperamos, fiquem para a posteridade. No entanto, o próprio futuro prometido parece escasso quando, à nossa volta, exista uma leve sensação de fragilidade no reconhecimento de quem escreve. 

O escritor é um trabalhador do silêncio, existe na reclusão de um exercício solitário, longe dos destinatários da sua mensagem. A própria leitura é um trabalho individual, assertivamente afastado do processo da escrita. Estamos assim nos pólos, escritores e respectivos leitores, existentes numa comunicação que, essa sim, leva-a o vento, tão dependente da imaginação de cada um ela subsiste. 

O momento de encontro do escritor com os seus leitores são os lançamentos, as apresentações dos livros. Mas, quem sabe o vento, quem sabe o frio, nos deixa também aí tão sós, tão afastados da realidade que acreditávamos ter sido capazes de grafar no livro. Os leitores presentes são leitores do passado, ainda não leram o livro que já foi escrito, e toda o encontro se baseia noutros valores que não os da reunião à volta de um texto. 

Ainda assim, os poucos que surgem, têm palavras que ganham contornos mais fortes que a brisa, talvez porque eles representem algo mais do que os leitores que são: a amizade, o respeito, o amor. E fica o escritor agarrado a essas palavras numa noite bem fria, onde se volta a disfarçar de homem diluído na multidão. 

Seremos poucos, então? Poucos para segurar a possibilidade do livro? Poucos para marcar alguém fora do círculo de proximidade? Seremos poucos os que sentem a necessidade de alguma presença? Ou é mesmo melhor continuar a relativizar as coisas, a ignorar as importâncias, a desviar o olhar das pequenas promessas, das ténues ambições, vivendo disfarçados de homem com casaco a sair cedo de casa para comprar o jornal? Sem tristeza alguma, eu sei que sim. Eu sei que sim. 

21.1.11

Doze

Doze meses a viver dentro da poesia dos outros. A aprender-lhes a respiração, as palavras preferidas, as designações da ilusão. Doze meses a perceber o outro por dentro. A evocar uma geração toda ela feita de diferenças.

Doze meses na ansiedade de não falhar. O pânico do silêncio para pensar. O olhar vagueando por quem nos ouve. Felizmente, quase nunca uma resposta ao lado. Quase nunca uma desilusão. Doze meses aliviado pela inteligência dos outros.

Doze meses a respirar fundo no fim de uma sessão. A deixar-me embalar pelos sons que se descobrem ao fim da noite. A ver nos olhos dos outros o prazer de um encontro. Como se fosse possível ter sempre a gratificação de fazer descobrir algo a alguém.

Doze meses. Doze meses e apenas mais um, o que falta. Um ano inteiro a viver para a poesia dos outros. Um ano inteiro a aprender. A aprender muito. Doze meses e a segurança de que o poema pedido vai continuar a tocar no gira-discos de cada um.

20.1.11

Apresentação

Sábado vamos fazer a primeira apresentação pública do Afonso e o Livro.

A ocasião merece uma pequena digressão sobre a origem deste livro. A ideia surgiu de um desafio feito pelo Vitor Timóteo, dono de uma gráfica com quem trabalho há uns anos, para que eu escrevesse um texto que pudesse dar origem a um livro, isto com o intuito dele produzir esse livro e oferecer aos seus clientes e colaboradores. O desafio andou uns meses na minha cabeça, foi adiado por um ano, e acabou por dar origem à história do Afonso, esse rapaz que gostava muito muito de um livro que ainda não existia.

O Afonso é, no fundo, uma das  muitas pessoas que torce o nariz aos livros, como se torcesse o nariz à sopa. O que vão encontrar com ele, dentro deste livro, é que fazer um livro pode ser algo entusiasmante, descobrir segredos que num trabalho finalizado, muitas vezes, não surgem denunciados. O Afonso é também uma pessoa que acaba por descobrir as maravilhas da leitura e, dessa forma, tornar-se um ávido leitor de todos os livros do mundo.

Para lhe dar corpo, a Amélie Bouvier foi imprescindível. Os vários rascunhos nascidos a partir das palavras foram encontrar um Afonso que só podia ser mesmo aquele, um rapaz pequeno e aventureiro, capaz de vestir imensas peles, capaz de navegar e voar por um mundo que existe muito dentro da sua cabeça. E agora, este sábado, vamo-nos sentar numa livraria e mostrar o livro a todos os amigos que aparecerem. Como que a pedir que cada um leve o Afonso consigo e que possa assim descobrir quantos livros ainda estão por aí para ler.

Até já.


Afonso e o Livro - Sessão de Apresentação - Sábado, 22 de Janeiro, pelas 16 horas - na Livraria Livrododia, Torres Vedras. 

19.1.11

Escritor de alta competição

Bill Simmons, no seu The Book of Basketball (ou a história da NBA vista pelo famoso jornalista Americano), lista uma série de atletas e dando preferência àqueles jogadores que conseguiram ser geniais, ainda que apenas durante um ano, em detrimento de tantos outros que conseguiram longas carreiras sem nunca serem melhores que bons.

Tento ver isso na perspectiva do escritor. Para começar, o escritor seria um atleta que só joga finais, uma por ano, às vezes menos do que isso. Durante o resto do tempo dedicar-se-ia a treinar (leituras, rascunhos, pequenos projectos) ou a fazer jogos de exibição (leituras públicas, sessões com leitores, visitas a escolas e bibliotecas). Muitos deles, até, se recusariam a mais do que quatro ou cinco jogos de exibição anuais, a não ser que se aproximasse uma dessas finais (a publicação de um livro).

Para mais, durante todo esse tempo, o escritor iria ter momentos de menor confiança, incapaz de mostrar, até no treino mais básico, qualquer semelhança com o génio que lhe surgiria na final. Que treinador apostaria num atleta assim? Acredito que, pelos parâmetros com que analisamos a performance (desportiva, mas também, económica, financeira, etc.), nunca nenhuma oportunidade seria dada de mão beijada a um escritor. Para que se lhe evidenciasse o génio, ele teria sempre que beneficiar de um golpe de sorte (um tema que ocupasse as páginas dos jornais, um amigo que lhe fizesse um favor, uma inexplicável teoria que defendesse que certos livros vendem mais do que outros, a priori, sem contar com mais nenhuma das variáveis).

Em tempos onde a performance é a base do sistema em que vivemos, o escritor que pudesse participar em mais finais, teria também o benefício da escolha, embora numa contrariedade à lógica, demasiadas finais tendam a desvalorizar aquilo que o escritor produz. O escritor é assim empurrado para uma roda de questões que o fazem estar em teste permanente, como se a pressão fosse amiga da criação literária, ou como se ser bom não fosse já o suficiente para a maioria daqueles que se dedicam a um determinado ofício.

Ainda assim, é certo que nos nossos corações, vivem os escritores que conseguiram, uma vez na vida, jogar a final com genialidade. Os que foram apenas bons nunca entram nas nossas listas de favoritos.  Saber viver com isso é, de certa forma, o desafio que qualquer escritor tem que aceitar no dia em que dá o nome para ser um atleta federado. 

18.1.11

Começa a viagem

Todos os livros serão um só é um espaço onde vou falar dos meus livros e das viagens que faço com eles. O título, tinha-o guardado para uma possível edição completa dos meus livros de poesia. Chegado o dia em que isso parece fazer pouco sentido, chamo-o para o espaço virtual onde, para além da poesia, coabitam a literatura infantil, os livros lidos, os livros sonhados. Para o início da viagem trago o Afonso, personagem principal do meu primeiro livro infantil, tão bem desenhado pela Amélie Bouvier. É com ele que vamos andar nestes primeiros tempos. Venham comigo...

4.1.11

Luís Filipe Cristóvão nasceu na Praia de Santa Cruz em 1979.
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, frequentou o programa de Mestrado em Teoria da Literatura na mesma instituição.
Tem trabalho disperso por revistas e antologias em português, castelhano e lituano.
Pequena antologia para o corpo (poesia, 2007)
E como ficou chato ser moderno (poesia, 2007)
Santa Cruz (poesia/ fotografia, 2008)
A Cabeça de Fernando Pessoa (poesia, 2009)
Afonso e o Livro (infantil, 2010)

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