30.7.16

O fotógrafo aprendiz

Para o Afonso Faustino

Preferir a gradação da noite, onde os contrastes 
entre negro e branco se evidenciam naturalmente, 
enquanto se aprende a desfocar os cabelos longos
daquela que corre sem parar pelo jardim, agora

invadido por uns quantos acordes eletrónicos e 
luzes metálicas, a sublinhar azuis ou vermelhos
apenas evidentes ao olhar do fotógrafo aprendiz.
Assim se inicia a história de um mundo, todos os 

dias uma vez mais, quando alguém tem catorze 
anos e todas as certezas que o tempo nos pode 
dar, sem procurar ainda, fora da lente, um outro 

matiz, um outro olhar, que se esconde em código 
entre a multidão, mas que acabará descoberto 
quando, sob lupa, se revelar o trabalho no computador.

29.7.16

Obituário

Ali naquela estrada jaz o cadáver do encontro que 
não aconteceu, enquanto os carros continuam a descer
pelo alcatrão, a fazer pisca, a olhar quem vem lá, com 
destinos incertos e tantas vezes inseguros, mas nenhuma

preocupação. Logo ali, naquela janela que não faço ideia
qual seja, escondes-te tu e os teus óculos escuros, usados
para não ver o mundo que te saúda ou os poemas que 
nascem das rotundas mal plantadas por aí. Alguma vez 

te disseram que a arte nasce das coisas que não acontecem 
na vida real? Alguma vez te sorriram sem que nada quisessem 
de ti? Porque o mundo não é assim tão mau quando pomos 

finalmente as mãos na terra para deixar que o medo 
não tenha mais poder sobre nós ou as nossas vontades. 
Ali naquela estrada jaz o adeus ao que nunca aconteceu. 

Revolução

E se um dia abrires, finalmente, os olhos para
a revolução, vais saber que as ruas são livres
e os corpos se despem por inteiro entre as frases
que ficam por dizer nos lábios que não se beijam.

Porque se um dia acordares e conquistares o
teu direito a seres quem tu bem quiseres, é certo,
não te faltará o tempo nem o modo para ergueres
os braços e as mãos agarrando o mundo inteiro.

Pode ser de noite e no escuro nada vês ou pode
ser de tarde com o sol alto a cegar-te ou pode ser
de manhã com o espesso nevoeiro a encobrir-te.
Pode ser tudo, nada te pára, porque tu és revolução.

17.7.16

Chuva quente

Chegou a chover esta manhã, enquanto
os teus ouvidos ainda estalavam magoados
pelos decibéis exagerados da noite passada.
Com uma faca pouco afiada, eu tentava limpar

a pele até ao ponto de o sangue emergir por
entre os poros, irritado ao ponto de escorrer
e só depois transmitir aquela dor, insuportável
e fina, que me tolhia qualquer desejo de 

movimento. Chegou a chover, dizia, mas não sei 
se as minhas palavras chegavam até ti ou 
se a tarde inteira é apenas uma construção 

frágil que se vai desmoronando com o subir
do sol até ao topo da montanha para depois 
descer do lado onde a nossa vista não alcança. 

Névoa

Por aqueles dias escrever não era uma
inspiração, tal como a névoa caía feito
chuva sobre as cabeças dos veraneantes
confusos com a situação meteorológica

habitual naquele lugar. Também todas as
promessas de que aquele seria o último 
livro eram consideradas vãs, pois esta 
sede não se oferece a ciências nem a

crenças, esquece-se quando saciada para
regressar, brutal, quando seco transparece
o coração. Os pés sujos e negros pesavam

sobre uns chinelos baratos, marcas de pedras
assentando sobre a planta, território neutro
de uma luta que insistes em não compreender. 

14.7.16

Tudo dói

Tudo dói, Carolina, diz a avó à pequenina
e o último trago do café amargo encrava-se, 
vai comigo escadas rolantes abaixo, tropeça
em gente que passa, enrolando-se em mim no

caminho até ao carro. Tudo dói, diz a senhora, 
como quem o diz a toda a hora, a pequenina
encolhe os ombros, fica calada, tenta a custo
arrancar o papel do gelado que parecia ser

via verde para qualquer sofrimento. Tudo dói, 
a pequena comerá o gelado, eu acabo por me 
fazer à estrada e até podia dizer que a vida

segue o seu percurso, mas não segue, porque
ainda vai haver uma avó desencantada pronta
a prender as sinceras emoções da Carolina. 

13.7.16

Desenhar jardins

Desenhar jardins é combater o humano resistente
em nós, retirando-lhe o chão trabalhado de debaixo
dos pés para lhe impor relvas escorregadias, trilhos
de terra e pequenas poças depois da rega.

É procurar nesses recantos do mundo onde se vão
desenhando os pés de quem passa pelo relvado
porque o esquema labiríntico dos passeios se estende
em sentido contrário ao da nossa evolução.

Desenhar jardins deveria, assim, ser promovido como 
uma arma de guerra contra as evidências, um sonho
utópico de quem se recusa a ir por ali, querendo

sempre um pouco mais das coisas do que linhas retas, 
curvas adequadas ou poupança de meios. E nós, os
que ali vão passar, sem medo de sujar os sapatos.

Contracampo

Auguro um mundo onde se veja só com 
os olhos, para que cinematográfica se possa
tornar a vida, finalmente. Porque o aquilo que
se deixa ou passa a ver com a mediação do 

cérebro, acaba contaminado com a leve 
sensação de que aqui andamos apenas 
para nos magoarmos uns aos outros. Melhor, 
então, esperar essa hora em que a nossa 

cegueira não seja existencial, que se possa ver,
de todas as coisas, um e outro lado, sem que 
isso transforme aquilo que olhamos mas, sim, 

aquilo que temos em nós. E seria após o 
recebimento dessa dádiva que, crescidos e 
coerentes, poderíamos começar a pensar. 

6.7.16

Ao sol

Se agora gasto os dias a escrever poemas
tristes foi porque alguma vez passaste ao 
meu lado e eu sabendo que não me vias, 
porque os teus olhos fechados engolidos

pelo pensamento e os óculos cor de noite
te transportam para um lugar onde nenhuma
luz queimaria a tua alma pelo confronto com 
um pobre manipulador de palavras gastas.

Tu, que tens o voar dos pássaros no andar
e sobes a rua como quem desce de uma
conversa com uns quantos anjos caídos, 

não precisas de olhar para os lados para 
saberes quem és, sempre te entendes 
melhor no silêncio dos teus monólogos.

5.7.16

Trazer a poesia para a rua

Camaradas,

vou cometer a imprudência de falar de poesia numa sessão onde já falaram referências maiores desta arte. Penso, no entanto, que há uma questão de história e filosofia da ação que se impõe, apesar de eu me limitar a utilizar um rol de palavras que já aqui foram ditas.

O 25 de abril permitiu-nos viver a poesia na rua, exercendo a expressão total dos sonhos e ambições do povo português. No entanto, a situação compreendeu os perigos de deixar por aí à solta aquilo que não sabe viver preso. Logo se procedeu à execução de um plano de liquidação da poesia.

Primeiro, através das lógicas capitalistas da produção do lucro, fazendo do “Portugal país de poetas” um slogan de um país que não produzia, que não servia à modernidade.

Segundo, através da imposição, da parte das casas editoriais, do valor da venda sobre o valor da qualidade da obra.

Terceiro, atacando os próprios poetas, que se convenceram de que aquilo que faziam nada valia, imputando-lhes os custos de produção dos livros e respetivas margens de lucro.

Perante isto, os poetas fugiram das ruas, isolaram-se, passaram a viver em circuito fechado, longe da vista e dos ouvidos do povo (e, logo, do seu pensamento).

Algumas personagens foram, ainda assim, escolhidas para representar a “espécie em vias de extinção” nos festivais e comitivas de Estado, garantindo que a poesia voltava a ser, como antes, uma poesia amigável, confortável ao poder, pertença de “saraus” no Palácio de Belém.


É preciso que nós, enquanto comunistas, saibamos colocar um travão a esta realidade, defendendo os valores de abril e a ideia de que um outro país é possível!

Devemos trazer a poesia para a rua:
    Na nossa ação junto daqueles que vivem à nossa volta, que frequentam os mesmos locais de trabalho e de lazer.

    Na nossa intervenção nas associações, nas coletividades, nos grupos desportivos, nas instituições onde, como eleitos, temos essa obrigação de pensar e falar diferente dos outros.

    Na nossa opção de classe, com visão de futuro, ensinando e promovendo junto dos mais jovens aquilo que de mais poético há no nosso projeto - a liberdade.

É fundamental que o povo português saiba que é livre, sendo que isso só é possível através do exercício da poesia.

Entendam que cometi a imprudência de falar de poesia, falando de cultura, falando de trabalho, falando de vida, falando de mundo. É dessa forma integral que devemos viver, enquanto comunistas que somos.

É esse modelo que exige, da nossa parte, enquanto coletivo, a organização de experiências e a elaboração de planos de ação que possam ser estudados e postos em prática pelos camaradas que vivem e trabalham por todo o país.

É isso que espero que possa continuar a ser realizado nesta reunião, ficando bem expresso nas conclusões que daqui saírem.


Intervenção na Reunião Nacional sobre O Estado da Cultura em Portugal e as propostas do PCP, realizada em Lisboa, no dia 2 de julho de 2016. 

4.7.16

Mergulho

Eles entram água dentro ao fim da tarde
como se os sonhos não voltassem a nascer
a cada noite. Eles entram, destinados ao 
mergulho, como se o acordar não fosse
mais que uma promessa.

Quando os seus pés na areia se refrescam, 
destinados ao sorriso eles seguem água dentro. 
Não precisam de mensagens ou cidades, o seu 
mundo é garantido e os seus corpos resistiram 
à passagem da idade.

Eles entram, como quem sai ao encontro 
de um destino que não foge, nem se adianta, à
palavra que lhes falta, sem discurso ou realidade. 
Ao fim da tarde, mergulhados, água dentro, 
essa é a sua única verdade.

Asas dentro

Querer falar-te é, também, saber o ar
com que tu dizes cada palavra do dicionário.
Pudesse eu aprender o alfabeto dos 
teus pulmões e voaria com as asas que 
trazes dentro. 

Querer dizer-te é, também, procurar 
todas as letras que te nascem dos dedos.
Fosse eu viajante no tempo e encontraria
uma data qualquer que nos pudesse ter
no início do mundo.

Querer querer-te é ainda uma falta de
chão quando as pernas aprendem o andar.
Marcasse eu cada milímetro do caminho
e já o verão estaria seguro de não chover
dos olhos no calendário. 

Quadra popular

Quem vem da terra e à terra
quer voltar, dê dois passos no
caminho, junte-se comigo a 
cantar. É bonito ser-se inteiro

mesmo belo é ser-se cheio
de amigos que contar. Quem 
vem da terra e à terra quer
voltar, dê dois passos neste

estrado, aprenda também a
dançar. É bonito ter-se o jeito
mesmo belo é ter-se tudo
pr’o qu’ainda puder faltar. 

1.7.16

Agulha

Aquela agulha que te deixaram dentro,
depois da operação, esquecida mas
nunca ignorada, bem presente/pressente.

Aquela agulha a que te afeiçoaste tanto,
mesmo quando pica ou quase rasga cada 
órgão, a tua pele, ao ponto de já não viveres 

sem ela. 

Serviço da dívida

Ao serviço da dívida me têm aqueles
a quem nunca deixei dúvidas de ser
qualquer coisa mais do que eles próprios
poderiam ser.

Tal qual um carro desgovernado pelas
estradas onde caniços se alinham nas
bermas alimentados pela água das chuvas
e dos radiadores. 

Ao serviço da dúvida me ofereço um dia
atrás do outro perseguindo a dívida que 
contraio comigo mesmo e, ao que parece, 
nunca chega, nunca chego.