30.4.12

Dor


A Dor. Parece uma coisa simples, não é? Às vezes, aparece. Outras, desaparece. Nem sempre tem explicação.

28.4.12

Ele agora está velho - VI


Olhe, nem Aljezur, nem despedimento. O rapaz queria viajar. Andava sempre nas festas, nem tanto pelas festas, mas para andar de um lado para o outro. Ia a Aljezur, a Odeceixe, ao Cercal… E então quando eram as Festas de Beja, até pedia dias ao patrão. Uma vez disseram-me que o tinham visto em São Marcos da Serra, nas festas. Ele gostava de andar de um lado para o outro, tinha idade para isso, e olhe que ele não devia ganhar nada mal ali na loja. Mas o patrão queria alguém mais sossegado. Cá para mim, quando ele foi para Aljezur, já sabia que não tinha emprego, já deviam ter tido essa conversa. Por isso é que ele se meteu naquela briga por lá, ele nunca se metia nisso. Ele ia às festas para ver as pessoas, para lhes ouvir as conversas. Sei disso pelo que ele me contava. Era passar ali à porta da loja e lá estava ele sempre pronto para dizer coisas. Para contar onde tinha andado, o que tinha feito. Quando voltou de Aljezur é que já não falava muito. Quantos dias foram? A gente até pensava que ele tinha morrido para lá. A festa foi no domingo e ele apareceu aí na quinta-feira. Vinha todo sujo, ele que era um rapaz de se arranjar, de andar direitinho, era um homem de trabalho, mas gostava de fazer figura. Apareceu na quinta-feira e vinha pendurado numa camioneta das batatas. Ao que sei, apanharam-no ali no Vale do Juncalinho, está a ver onde é? Devia voltar a pé. Naquele tempo era assim, a gente bem gostava da camioneta, mas não havendo dinheiro, olhe, a malta desenrascava-se a pé. O que é que ele lá ficou a fazer? Quem lhe disse que ele ficou por lá? Não. Cá para mim foi ver o mar. Ele falava muito disso. Que havia de ir uns dias ver o mar. E ali de Aljezur à praia aquilo era um saltinho. Vai-se a ver e ele queria era ser marinheiro. Foi para ali à procura de alguma fragata, o rapaz. Ele não era doido, mas gostava. E se não tinha ninguém à espera dele aqui, para quê voltar. Foi ver o mar, para mim é certinho, foi ver o mar. E depois de andar ali uns dias lá pensou que voltava a pé para a terra. Por isso é que o encontraram na quinta-feira, por lá. E trouxeram-no para aqui. Trouxeram-no para aqui e em vez de ir para casa mudar de roupa, sentaram-no na taberna, queriam que comesse, que bebesse um copo, que contasse o que lhe tinha acontecido. Mas ele nunca mais falou muito. Ficou ali, deixou-se de ser amigo de falar. 

27.4.12

Ele agora está velho - V


A Maria Aparecida tinha o seu feitio, mas isso que me está a dizer parece realmente muito exagerado. A mãe dela morreu quando ela era ainda pequenina, tinha sido sempre muito fraca dos nervos e a gravidez não lhe fez nada bem. Aliás, a terceira gravidez, porque há o irmão mais velho e tinha havido pelo meio outra barriga que se ficou. Foi aí que a mãe ficou pior. Depois ainda engravidou da Maria Aparecida, mas foi contra a vontade dela. Por ela, não queria mais filho nenhum. Mas o patrão, sabe como são os homens. Só um filho não chegava. Era preciso mais gente na casa. Ela ficou muito frágil quando a criança nasceu e morreu pouco depois. A Maria Aparecida cresceu numa casa de homens, era uma revoltada. Queria ser como eles, fazer o que eles faziam, o pai ainda a tentava segurar, mas aquilo era um feitio que ela tinha de pequena, criada no meio dos homens, não era nada menina. Era é muito bonita. Mesmo muito bonita. E o pai preocupava-se com isso, porque vinham para aí os primos de Lisboa e os outros rapazes, e uma moça daquelas assim bonita, criada no meio de homens, o pai tinha medo do que saísse daquela cabeça. Então, parece que a prendia no quarto ou assim, e ela quando saía vinha louca, ia para a rua, queria ver tudo, sentir tudo, fazer tudo, era assim uma rapariga bem diferente das outras. A única pessoa com quem ela acalmava era ele, isso sim. Ela passava na loja, conversava com ele, ficava quieta. Ele sabia falar-lhe, sabe? Ele sabia o que ela queria ouvir, tinha-lhe o jeito. E ela gostava. Se calhar era o único homem que lhe falava como se ela fosse um homem também. Era isso que ela gostava. Mas é claro, não podia casar com ele, nem eu acho que ela alguma vez tenha pensado nisso. Ele era um amigo, o rapaz com quem ela falava. Para as outras coisas, bem, começou a abrir os olhos e assim, começou a arranjar-se de maneira diferente, devia ter dezasseis anos ou assim, já era uma mulher. O pai preocupava-se mas qual é o pai que não se preocupa? Quando ela foi para Beja viver com a tia, para estudar, lá conheceu esse rapaz e marcaram o casamento. Para o pai foi um alívio. Não, acho que o despedimento não teve nada a ver com isso. Eu cá acho que não. 

26.4.12

Ele agora está velho - IV


Pois foi, houve algazarra lá, houve. Mas não foi nada disso. Ele desafiou um rapaz que estava no tiro ao alvo. Desafiou o rapaz e apostaram quem acertava no alvo. E o rapaz atirou aquilo direitinho no centro do alvo. Mesmo direitinho. E disse-lhe que se calhar nem valia a pena era gastar o tiro que a aposta estava ganha. Ele nem o olhou. Pegou na espingarda, botou um tiro mesmo dentro do buraco do outro, como se fossem tiros iguais, dois tiros e só um furinho no papel do alvo e depois largou a espingarda e deu-lhe aquela batatada na cara que o outro ficou parvo. Ficou parvo e caiu de cu, ali na feira. Mas nem reagiu. Ficou quieto. E ele seguiu caminho e foi para a taberna beber um copo. Eu cá para mim acho que ele já não andava certo. Já tinha havido coisa. Não foi daquele dia. Ele já vinha com coisas na cabeça. Eu cá para mim já havia problemas com o patrão. Ele ficava muito tempo à porta da loja, a falar com as moças, com as freguesas, e o patrão queria-o lá atrás do balcão, como nas lojas de Lisboa, está a ver, em que os moços ficam atrás de balcão, assim direitinhos, à espera. Ele não era nada disso. Acendia um cigarro e ficava ali à porta, a chamar as freguesas. E as raparigas passavam e falavam com ele, ele fazia-as rir, era assim. Era bom tipo. Tirando os repentes, era bom tipo. Mas já havia ali coisa, não foi em Aljezur. Aquilo foi uma briga normal de rapazes. Ele é que já tinha coisas na cabeça. E era o patrão. O patrão ou a Cidinha. Alguma coisa era. Já sabe da Cidinha não sabe? Essa rapariga tinha o diabo no corpo. Ai é que tinha mesmo. O pai chegou a levá-la ao médico e tudo. Aquilo parecia um furacão quando passava na rua. O pai queria-a em casa e ela gritava e saía de casa, parecia doida. Só ele é que sabia falar com ela. Mais ninguém.

25.4.12

Ele agora está velho - III


Olhe, eu posso garantir-lhe que houve mesmo pancada lá em Aljezur. Eu sei porque estava lá, então não houvera de estar. Era a festa de Aljezur, porra, toda a gente ia lá ao domingo. Aquilo foi assim, estavam uns rapazes na barraca do tiro ao alvo quando ele se chegou a olhar. Acho que era rapaziada de fora, pela algazarra que faziam, ou então já vinham com a festa de ontem, está a perceber? Aquilo era tiro no alvo e tiro em toda a parte e ele chegou-se a olhar, daquela maneira que ele olhava, sabe? Ele ficava assim encostado com o cigarro no canto da boca, tinha visto aquilo num jornal, que era dos filmes ou o raio. Ele põe-se assim e a algazarra começa-se a virar para ele. Houve ali umas palavras, de um lado para o outro, e olhe, ele era um rapaz sossegado, mas está a ver, tinha aquele feitio de ser alto e olhava os outros… Bem, aqueles não o conheciam e não gostaram. Atiraram-se a ele, mas ele tinha uns braços que parecia um touro. E ele guardava a força toda. Ele guardava aquela força durante semanas e semanas em que não se zangava com ninguém e depois quando dava um soco, deus te livre, o primeiro rapaz que se chegou a ele levou naquela cara com tanta força que deve ter ficado com a cara pisada durante semanas. Depois eles eram muitos e atiraram-se a ele e ele ainda lhes deu luta. A gente queria ir ajudá-lo mas ele negava-se. Gostava de se meter naquilo sozinho. Também aquilo durou enquanto  o diabo esfregou o olho, ele deu o soco a um, uns pontapés nos costados de outro, eles eram quantos, uns quatro ou cinco, puseram-se à roda dele, mas já estava o dono da barraca a chamar pela Guarda, com medo que lhe caíssem em cima das coisas e lhe deitassem aquilo tudo ao chão, e a rapaziada endireitou-se toda e foi cada um à sua vida. Eu cá acho que foi só isso. Cada um à sua vida. Ele lá devia ter mais alguma coisa.

24.4.12

Ele agora está velho - II


Dizem que todas as histórias são histórias de amor, não é? Mas esta não é. Ele era um rapaz todo bem posto, era, e ficou assim quando a Cidinha casou. A Cidinha era mesmo a rapariga mais bonita da aldeia. Mas não foi por isso que ele ficou ali, a passar os dias inteiros na paragem de autocarro. Não, ele ficou ali porque o patrão o despediu. Num domingo dizem que ele foi à festa de Aljezur. Apanhou a camioneta e lá foi ele, para a festa. A festa de Aljezur era bem grande, naquele tempo. Tinha barraquinhas de tiro ao alvo, tinha o baile da matiné, umas vendas de bebidas, uns jogos para os rapazes. Ele foi para lá, ainda demora um tempo grande a lá chegar, mas naquele dia havia camionetas bem cedo, porque muita gente ia à festa. O que eu sei é que ao fim da tarde, quando a camioneta veio de volta, ele não estava lá. Já foi há tanto tempo. Mas ele não estava lá, isso é certo. Passaram dois, três dias e ninguém sabia do homem. Uns já diziam que tinha se metido numa bulha com rapazes de lá e que a Guarda o tinha preso. Não sei bem o que aconteceu, não lhe sei dizer. Eu também fui a Aljezur nesse dia. Apanhei a camioneta com ele. Eram uma sete da manhã e já estava um calor dos diabos. Fumámos um cigarrito antes da camioneta chegar. Ele já não falava muito, fizemos o caminho todo meio calados. Havia umas moças que iam mais animadas, na frente. Nós íamos com a atenção dos rapazes, está a ver, a ouvi-las assim, a conversar, a gente a ouvir. Um ou outro mais malandreco lá tentava dizer alguma coisa, mas elas mandavam-nos estar calados. Sabíamos se falássemos muito, elas não diziam nada, e a gente queria era ouvi-las. Chegámos lá antes da hora de almoço. Havia muita gente em frente à Igreja, a sair da missa. Já estava a festa toda montada, então aquilo já durava há dois ou três dias, a gente é que só podia lá ir ao domingo. Eu ainda andei com ele um bocado, a ver aquilo, a beber um copo. Depois fomos aos jogos e deixei de o ver. Mas não, não houve bulha nenhuma, aquilo era tudo gente boa. Tudo sossegado. Ele lá foi à vida dele e não voltou na camioneta. E depois foi isso.

23.4.12

Ele agora está velho - I


Ele agora está velho, mas era um rapaz todo bem posto. Enamorou-se da Cidinha, a filha do patrão aqui da aldeia. Toda a gente lhe disse que não era grande ideia, ficar assim apaixonado pela rapariga. Mas os homens, sabe como são, os homens são mesmo assim, metem uma ideia na cabeça e depois tirá-la? Não se tira. A Cidinha era mesmo a rapariga mais bonita da aldeia, nisso ele não foi nada parvo a escolher. Mas ela lidava com os meninos de Lisboa, que passavam aí no Verão. Tinha primos que eram  estudantes. Tinha uma tia em Beja que queria que ela estudasse. E então era com este rapaz que ela ia casar? Pois está claro que não. Ele agora está velho, mas naquela altura não era nada de mandar fora. A Cidinha é que estava habituada a outras coisas. Rapazes perfumados, com camisas bonitas, engomadas. Sapatos engraxados. Como é que ela ia ligar para um rapaz com botas do campo, com as unhas cheias de terra. Foi uma tontice. Começou a ver-se pela cara dele na taberna, a olhar para o sol no meio da praça, a ficar calado. Os outros rapazes punham-lhe copos à frente e ele parecia que tinha perdido a força nos braços, nem bebia aquilo. E isto foi quando? Foi quando a Cidinha se casou. Pois. Ela casou-se e ele ficou naquele desânimo. Naquele apagamento. Ficou assim como está para ali, velho num repente. 

20.4.12

Eterna promessa

Viver no mundo como se fosse sempre sexta-feira, sem ter nunca posto um pé num sábado.

19.4.12

Parolo Hardcore

Das pernas tremo e muito tempo calado fico. As viagens fazem-me calor, o casaco aguenta-se sobre o ombro. Se me diriges a palavra gaguejo, se não me diriges deixo-te ir – na minha terra, meter conversa é facilmente confundido com perseguir. Se te olho fixamente, eu sei, vês o vazio dentro do meu olhar, mas talvez não percebas que existe uma coisa chamada pensar. As tuas fronteiras são o que são. As minhas não me servem de prisão.  

18.4.12

Só me sai poesia

Para o Diego Armés

Já tentei de tudo para ser o que sou, engraçado como tão longe de mim está esse tipo onde eu me vejo. Entre mim e ele, tantas pessoas que passam, num ruído imparável de uma carruagem de metro sempre em hora de ponta. Eu já tentei de tudo para ser eu de outra maneira, talvez mais fiel ou mais consistente com o que penso. Mas no fim do dia, só me sai poesia. 

17.4.12

Fotografia em Veneza

Para o Paulo Bandeira Faria

Sentados os três na escadaria, o escritor vai desenrolando as narrativas da cidade aos ouvidos fechados dos seus dois filhos. A imagem fixa-se na fronte sonhadora do escritor, no centro de tudo, como se iluminado pela mão de um qualquer pintor renascentista. Das histórias que o escritor contou naquela tarde, não há nenhum registo, e mesmo se perguntassem a uma das crianças, seria parca a sua memória. No entanto, daqui a muitos anos, quando do escritor sobrarem apenas os livros e os afetos e as crianças forem aquilo que, pela vida, foram desejando ser, uma delas lembrar-se-á exatamente do que falava o seu pai, naquela tarde, em Veneza. Não há forma mais poderosa de entender o valor da literatura. 

16.4.12

Fim

Um barulho de tesoura, ao fundo, a casa vazia e tanto passa na tua cabeça o passado como o futuro. Engoles em seco, uma ou duas palavras, poucas vezes percebes onde te levam os teus passos. És navegante ou estás só perdido, a casa vazia, os olhos ardem, o vento sopra, o mundo é isto mesmo. Não sabes se desaprendeste a ler ou se é só o papel que tremeu todas as letras desenhadas. Mas tanto faz. 

15.4.12

Mensagem

A partir de Carloto Cotta

“Quando a alma doía, o corpo era dormente”. Não foi assim há tanto tempo. Aquela longa alucinação adolescente, passada sentada num pequeno banco do café em frente à escola. Tu descias a rua e eu acendia cigarros, os dedos pousados sobre o jornal desportivo, as unhas por cortar. Tu sabes, eu sempre fui comodamente desajeitado à minha maneira e gozar agora com o tempo que passou é pouco. Não há lágrimas que viajem em calendários. É por isso irónico que eu te encontre quando, na alma sossegada, o corpo aprendeu a fazer-se tempestade. Querer e não querer são, quase sempre, sentidos diferentes que nos levam ao mesmo destino. Pois por muito que “depois de uma noite venha sempre um dia”, na minha cabeça só ecoa um “aceita, Maria”.

13.4.12

Decorar

Era, sem dúvida, qualquer coisa muito fácil de decorar. Mas esqueci-me. 

12.4.12

Novos

Ninguém a ficar mais novo, disso tenho a certeza, ninguém está a ficar mais novo. Um dia andamos todos na escola e todos tivemos sonhos. Cada um arranjou maneira de acomodar os seus à sorte que teve, e agora dirigimos associações, trabalhamos em escritórios, seguimos negócios de família, enfim, somos todos mais ou menos parecidos com os outros homens mais velhos do que nós. Eu ia dizer pais, mas não, parece que escolhemos ser diferentes deles, apenas para sermos parecidos com outros homens quaisquer. Ninguém está a ficar mais novo. Lembramo-nos de músicas antigas e sorrimos para quem passa na rua, como se quisessem saber de nós, estas outras pessoas que têm as suas vidas, que têm os seus sonhos, que querem ser parecidas com os seus pais, mesmo, apenas sendo mais felizes, um pouco mais felizes e ricas, essas pessoas, as que ainda são novas, as que ainda terão tempo para pensar que não ficarão mais novas, mas só daqui a uns anos, talvez, ou numa outra noite que não esta. 

11.4.12

Mesa

É só uma mesa de café, mais uma mesa de café. Uma noite de primavera mais fria do que todas as outras. A lembrança de neve do ano passado, “no dia 25 de abril”, uma mesa de café, alguns homens com pouco cabelo, garrafas de cerveja vazias, um ou outro copo de licor, uma mesa de café. Um maço de cigarros que se vai esvaziando, um telefone que toca, um encontro que se marca. A noite mais fria, as mãos abertas sobre os braços, qualquer coisa que nos aqueça, “um sítio mais quente, vamos para um sítio mais quente”. É só uma mesa de café, palavras de circunstância, pessoas que se conhecem só de vista, vidas que se cruzam, inúteis, numa mesa de café. Apenas uma mesa de café.

10.4.12

Revistas

Olhas as revistas antigas espalhadas pelo chão da sala e não é a viagem que tinhas previsto. Não ficaste horas e horas agarrado aos pormenores, não lembraste felicidades passadas, uma ou outra coisa que a memória apagou. São revistas antigas, papel, que em vários momentos pensaste deitar fora e só guardaste porque, talvez, dizias tu, talvez isto valha algum dinheiro. Agora estão espalhadas pelo chão da sala, tempo de outro tempo que tens dificuldade em arrumar, na limpeza da casa onde preferes pensar no futuro. 

9.4.12

Músculo

Aprendes a situar os músculos quando eles se rompem. Queres andar e não podes. Um mínimo esforço e uma dor rasga-te os sentidos. Sentes-te fraco e forte, ao mesmo tempo, incapaz de decidir, vivo pelo sofrimento. Que queres mais? És humano. Definitivamente humano. E toda a cura é um processo de regresso da dor. 

5.4.12

Cruz

Quando fizeram com que Jesus se deitasse sobre a cruz, antes de lhe pregarem as mãos e os pés, apenas uma coisa lhe passou pela cabeça. Poder, finalmente, descansar. 

4.4.12

Carne

A carne corta-se com leveza. Seguras a faca e deixa-la percorrer o músculo, lentamente. Como se tivesse sido feito para ser cortado, o músculo vai-se abrindo ao contacto com a lâmina, sendo que, depois de cozinhado, nenhum sangue escorre do pedaço. A carne corta-se como um dia nasce, devagar, no ritmo exagerado das coisas naturais. Depois leva-la à boca como se entendesses a religiosidade do momento. Mastigas de olhos fechados, em paz, mesmo que consciente de um certo pecado, não o da carne nem o da gula, mas o da luxúria. Repousas a faca sobre a mesa enquanto engoles o bolo mastigado. Sabes que, apesar das glórias do mundo, tu podes descansar. 

3.4.12

Peso

Subia a encosta, com uma mesa de sala às costas. A cada três passos parava, mas logo a mulher gritava que queria a mesa em casa antes que anoitecesse. Sísifo lá carregava, certo já da nulidade do seu esforço. Ao longo dos anos, tinha sido assim. Carregar cadeiras, armários, mesas, um roupeiro(!), encosta acima, para compor a casa, a casa que haviam sonhado sua. Mas quando finalmente lá chegava, por uma razão ou por outra, nada servia, nada parecia satisfazer a vontade da sua mulher. Então, deixava a peça à porta de casa e uma carrinha municipal acabava por passar para devolver o peso ao entulho do lixo. De alguma maneira pouco compreensível para ele, a carrinha só aparecia para se desfazer de partes da sua vida, nunca para acrescentar algo. Pensava nisto enquanto subia a encosta. Nisto e na vontade, cada mais pesada, de descansar. 

2.4.12

Ovos

Em busca dos ovos, ela andava em busca dos ovos. Os olhos pequenos, os cabelos despenteados, uma tarde de chuva à entrada de abril. Pela rua, por entre os poucos carros ali estacionados. Procurava os ovos, os ovos da Páscoa, que avó lhe dissera que poderiam estar em qualquer lugar. “Já vi na casa inteira, não estão lá”, disse-me ela, a respiração alterada. Eu cocei a cabeça, chovia agora mais forte. Tinha trocados os domingos, a idade, as intenções. Segurei-lhe a mão e conduzi-a para casa. Era mais do que hora de tomar a medicação e descansar.