24.8.11

(sem título) (2007)

14
Os dias
e depois tudo tudo
sempre a andar para trás.

15
Tinha cinco seis anos
talvez
mais coisa menos coisa
lembra-se
e o pai a andar por casa
despido.
Sabia de cor
as noites em frente à televisão
e tinha os olhos grandes
muito sempre muito abertos.
Diziam que era
calado.

16
Ah sim, mais velho, pois
a escola a rua a escola
meteu as mãos nas virilhas
durante o banho
meteu as mãos no pénis
sem pensar em ninguém
em nada
descobriu-se
durante o banho.
Ah sim, mais velho, pois
o quero-me quero-te ao infinito
como as erecções no quarto
sim
meteu as mãos ao pénis
meteu

17
Fechou a porta do quarto
quando apareciam pela face
as primeiras sombras do bigode.
Fechou
a porta
e no quarto vestiu casacos em cima de casacos.
Fechou
do quarto
a porta.
O que se via era a sombra.
A  sombra só.

18
Lembra-se, lembra-se de tudo tudo
os cinco os seis os doze os quinze
lembra, lembra-se
infinitamente
em todos os momentos,
como se pode esquecer
o pai e a mãe sentados na mesa da cozinha
os irmãos a brincar cada um numa ponta da casa
lembrar lembrar
noites em frente da televisão
alguém que bate à porta
o avô morreu
lembrar lembrar
o silêncio de quem não fala
sentados na cozinha
deitados na cama
lembra-se, lembra tudo,
o corpo o corpo o corpo
quem é que tem corpo quando a cabeça estala e explode
mil pedaços de lembranças
a que não se consegue escapar.


Pequena Antologia para o Corpo, 2007