2.8.11

(sem título) (2007)

1
Há uma luz esguia ao fundo da cidade.
Talvez não o reconheças, mas o fundo da cidade está arrumado depois da estrada.
Seguimos sempre as placas, como se desejássemos viver pelas normas, pelas autoridades parentais
e depois chegamos ao fim pensando, sou crescido, mas não sei.
Aparece então, no lugar do silêncio, essa luz esguia,
olhos que brilham na sala escura
e mais uma vez retorna ao pensamento, não sei.

2
Os homens conversam na soleira da porta.
Lá fora os cães, as crianças correm.
É sábado de tarde, sopra uma brisa.
Os homens falam dos seus assuntos,
ligeiros, as crianças inventam os seus jogos,
cada vez mais sérios. Dentro das casas,
as mães sopram o vapor dos bolos acabados de cozer
e a televisão canta músicas muito calmas.
Os homens conversam na soleira da porta.

3
A meio da noite disse, romperam-se as águas,
e ele, sem saber porquê, acendeu a luz,
procurou os óculos em cima da mesa-de-cabeceira.
Uma luzinha reflectia nos olhos dela,
percebia-se como estava assustada.
É agora, pensou. Levantou-se da cama
e foi ser pai pela vida fora.

4
Quando se entra na casa,
ouve-se um burburinho quase cego vindo de um dos quartos.
O que poderia ser alguém a rezar o terço, num murmúrio afogado de divino,
o que poderia ser um gemido adolescente solto no calor da própria descoberta,
é, enfim, um pequeno rádio que pretende resistir à morte
encontrando energia em pilhas há muito gastas.
Abrindo a porta do quarto, sabe-se como os seus olhos brilham perante os jornais desportivos,
com as fotografias e as listas infindáveis de nomes de jogadores.
Agarrado ao jornal com as duas mãos, cheirando-lhe a tinta,
adormecia a ouvir os relatos num  pequeno transístor.

5
Costumava ficar fechado no quarto
a ouvir as conversas e os risos dos mais velhos,  na sala.
Não se consegue perceber se sofria ou não.
Gosta de estar sozinho, dizia a mãe;
Comporta-se como um tipo crescido, pensava a avó.
Entre os homens grandes cultivara-se o silêncio e a incompreensão.
Se o avô respeitava o pacto também com o pequeno,
por talvez ser presença de lucidez naquela casa,
o pai usava-se do filho constantemente para se fazer valer homem.
Não podes isto, não serves para aquilo.
O pequeno costumava ficar fechado no quarto, a ouvir.
E os grandes não tinham medo que ele deixasse de sentir.

6
Quinto esquerdo. É de noite.
Fechado no quarto ouve gemidos de boca tapada.
Enrola a cabeça debaixo do cobertor, mas não adianta.
Não adianta mesmo.
Parece que o gemido ecoa, já não fora do quarto,
dentro da sua cabeça.
Minutos depois, portas a bater, mãos lavadas na casa de banho.
Adormecer a odiar a higiene.

7
Quase sempre, uma estranha noção do amor.
Nas suas maneiras de vestir, nos seus avisos de chegada,
quase sempre um amor maltratado, embrutecido, conflituoso,
pedra de lágrimas, animal.
Quase sempre, os homens. Calças vestidas na ausência dos sentidos,
uma eterna saudade de um colo materno utópico.
Quase sempre, no amor, o não saber como o fazer.

8
Em infinita discussão contigo mesmo,
estudas o manual de gestão de acidentes pessoais.
Nas paredes aparecem-te escritas as mensagens
que a ti próprio envias. Como se não pudesses esquecer
que és tu, nas tuas próprias mãos, quem te vale.



In Pequena Antologia para o Corpo, Ayuntamento de Punta Umbria, 2007