1.8.11

Construção (2005)

a meio da noite disse, romperam-se as águas,
e ele, sem saber porquê, acendeu a luz,
procurou os óculos em cima da mesa-de-cabeceira.
uma luzinha reflectia nos olhos dela,
percebia-se como estava assustada.
é agora, pensou. levantou-se da cama
e foi ser pai pela vida fora.

os homens conversam na soleira da porta.
lá fora os cães, as crianças correm.
é sábado de tarde, sopra uma brisa.
os homens falam dos seus assuntos,
ligeiros, as crianças inventam os seus jogos,
cada vez mais sérios. dentro das casas,
as mães sopram o vapor dos bolos acabados de cozer
e a televisão canta músicas muito calmas.
os homens conversam na soleira da porta.

perante os seus olhos brilhavam os jornais desportivos,
com as fotografias e as listas infindáveis de nomes de jogadores.
durante pouco tempo se imaginou a pisar
as linhas dos campos que o surpreendiam nas fotografias.
agarrava o jornal com as duas mãos e cheirava-lhe a tinta
dos pacotes vindos das gráficas.
para adormecer, ouvia os relatos num  pequeno transístor.

costumava ficar fechado no quarto
a ouvir as conversas e os risos dos mais velhos, na sala.
não se consegue perceber se sofria ou não.
gosta de estar sozinho, dizia a mãe;
comporta-se como um tipo crescido, pensava a avó.
entre os homens grandes cultivara-se o silêncio e a incompreensão.
se o avô respeitava o pacto também com o pequeno,
por talvez ser presença de lucidez naquela casa,
o pai usava-se do filho constantemente para se fazer valer homem.
não podes isto, não serves para aquilo.
o pequeno costumava ficar fechado no quarto, a ouvir.
e os grandes não tinham medo que ele deixasse de sentir.

quinto esquerdo. é de noite.
fechado no quarto ouve gemidos de boca tapada.
enrola a cabeça debaixo do cobertor, mas não adianta.
não adianta mesmo.
parece que o gemido ecoa, já não fora do quarto,
dentro da sua cabeça.
minutos depois, portas a bater, mãos lavadas na casa de banho.
adormecer a odiar a higiene.

em infinita discussão contigo mesmo,
estudas o manual de gestão de acidentes pessoais.
nas paredes aparecem-te escritas as mensagens
que a ti próprio envias. como se te apetecesse dizer,
existo e faço-me continuamente. assim vais.

tenho a sala arrumada, sabes, pode sempre chegar alguém
e assim mantenho uma divisão da casa onde a receber.
tenho a sala arrumada, sabes, porque o resto da casa está um caos,
e eu tenho medo, sim, tenho medo que chegue alguém,
e por isso a sala, o sofá aspirado, o pó limpo, o cinzeiro lavado,
sim, porque nunca se sabe.

a casa desarrumada é como uma fronteira,
uma barragem construída pelo meu desleixo,
obrigando a que ninguém aqui possa entrar.
patrocino um pequeno caos nas minhas coisas para poder dizer,
sempre que alguém sugere vir a minha casa,
não pode ser, ainda tenho que arrumar as coisas.
assim, sempre que tu trouxeres champanhe e rosas,
eu sairei de casa a correr para os teus braços.
não faremos nunca amor, nem jantares românticos, em minha casa.

In Registo de Nascimento, Livrododia, 2005