com os lençóis desembrulhados
sobre o leito, com as mãos
desapertando corpos, a
nudez dos teus sentidos, o
enquadramento da tua
figura, a mão, infinitamente
pequena e leve, sobre o obscuro
piano de cauda na sala da tua mãe.
permites-te embrenhar sobre a tela
essa mobilidade sem ombros
caras iluminadas pelo chão
por isso te reconheço
e sigo o caminho das pedras
marcação exígua e delirante
da maciez das pálpebras
enganadas pelas nuvens
oiço-te sussurrar baixinho
neste leito
onde toda a entoação da voz humana
tende a reduzir
o indivíduo receptor
ao estado de serpente fascinada
e entendo
quão grande pode ser
a instabilidade do momento
sem que nada fique
para o relembrar.
depois dizes, ensino-te o caminho, fica longe,
um pouco mais ao Sul, ou ao Norte,
que sei eu, as mãos rasgando vestidos,
o lustre nas paredes escavacadas,
um cão a ladrar muito muito alto e eu,
sozinha, mais uma vez, sozinha,
a cuspir inventado sobre o colchão.
faz agora silêncio
em todo o comprimento da sala
só um leve crepitar
ondula a minha respiração.
pergunto pelo meu corpo,
deixo cair em mim
as mãos do esquecimento.
seguro, com os pés,
a minha existência eréctil,
e apercebo-me da imensa
fragilidade de tudo isto.
in Registo de Nascimento, Livrododia, 2005