29.8.11

a prenda (2004)


estávamos sentados em frente à televisão. era de noite, acho eu, ou então já era muito muito tarde, depois da hora de jantar. em cima da mesa da sala, um monte de flores espalhadas, dentro de plásticos rasgados e de cartas de amor esquecidas. não, não eram minhas, eram do anterior inquilino da residência. era de noite, muito muito noite, e tu de pijama a olhares para os meus dedos dos pés. puxaste-me pela mão e chupaste-me um dedo. eu sabia o significado desse gesto, sim, eu sabia. mas ainda assim, fiquei quieto a olhar para a televisão.

no outro momento, era de manhã e havia bolachas caídas pelo chão da casa de banho, misturadas com pó de arroz e pés descalços. eu olhava a minha barba a crescer no espelho e tu, sentada na sanita, estalavas os dedos como se arrancasses a cabeça a uma galinha. chamaste-me ao teu lado e puxaste-me pelos boxers. seguraste-me o pénis com as tuas mãos e chupaste-o de um só fôlego. engoli em seco, como se engole no deserto. e procurei a minha lámina de barbear no armário, mesmo por cima da sanita. são horas de irmos comprar o pão, não são?

e depois talvez não fosse nada disso, ou talvez o pequeno almoço em cima da mesa da cozinha e a televisão ligada na sic notícias a dar as mesmas notícias da noite passada. e depois havia pão e vinho sobre a mesa, os pijamas arrumados a um canto, prontos a serem lavados. e depois havia também um vizinho que nunca aparecia mas que nós sabíamos que vivia lá em casa. e depois, ao passar os olhos pelo frigorífico um pedaço de marmelada esquecido, talvez fosse de outra pessoa. sou uma menina pequenina.