O leitor ou tem os dedos longos pela noite esticados
ou não é leitor. Será somente um animal dócil.
Resguarda-se entre as páginas sem letras
e nos intervalos ocupados dos escritórios.
Os dedos longos do leitor, pela noite esticados,
têm válvulas de fogo imitando línguas
e assentam nas costas do escritor como carraças.
O verdadeiro leitor passa os dias bebendo sangue
e adormece extasiado em perdidos lugares do mundo.
Se ao fundo da paisagem passa uma codorniz,
agora que é tempo de caça nestes domínios,
antes da refeição, antes do disparo,
entrará a codorniz poema dentro
com o lustro terreno das suas penas.
Neste dia, encontra-se o escritor
ausente da sua mesa de trabalho,
mas também na aparente inactividade
se desenvolve, silenciosamente, a palavra.
Ao não-leitor tudo isto é indiferente.
O escritor não é escritor,
só um homem passeando debaixo
da insuportável brisa de humidade
e cartuchos desta tarde de Outono.
O leitor não é ninguém, a não ser
um olhar doente e desvairado, nos dentes sujos
restos de poemas há muito provados.
O não-leitor prossegue a sua vida, indolente.
Assume o escritor a sua condição de lavrador
levando os joelhos à terra, deixando que os dedos
mergulhem no mar castanho onde nascem as videiras.
Não se pense, no entanto, que lhe são desconhecidas
as distâncias entre a enxada e a caneta.
O que o escritor lavra, neste gesto repetido,
é a comunhão do homem com a terra.
Onde quer que esteja a realidade,
não está nas páginas dos livros
-diz o escritor, ombros encolhidos,
a limpar as mãos sujas de terra nas calças.
O leitor, o que se viu em letra, de olhos vermelhos,
para além da verdade e da mentira,
chora a lucidez do criador.
Também eu lembro o tempo – fala,
agora, o leitor, enquanto caminha sobre terrenos lavrados.
Ao fundo ouvem-se os tiros, não já caça, guerra.
Os olhos vermelhos, no regresso à casa.
Para além da dor, também o incómodo dos fumos,
dos cheiros, da lama; palavras que nos sujam.