19.7.11

Prefácio (2005)

o leitor ou tem os dedos longos pela noite esticados
ou não é leitor. será somente um animal dócil.
resguarda-se entre as páginas sem letras
e nos intervalos ocupados dos escritórios.
os dedos longos do leitor, pela noite esticados,
têm válvulas de fogo imitando línguas
e assentam nas costas do escritor como borbulhas.
o verdadeiro leitor passa os dias bebendo sangue.
e adormece extasiado em qualquer parte do mundo.

se ao fundo da paisagem passa uma codorniz,
agora que é tempo de caça nestes domínios,
antes da refeição, antes do disparo,
entrará a codorniz poema dentro
com o lustro terreno das suas penas.
neste dia, encontra-se o escritor
ausente da sua mesa de trabalho.
mas também na aparente inactividade
se desenvolve, silenciosamente, a palavra.

ao não-leitor tudo isto é indiferente.
o escritor não é escritor,
só um homem passeando debaixo
da insuportável brisa de humidade
e cartuchos desta tarde de Outono.
o leitor não é ninguém, a não ser
um olhar doente e desvairado, nos dentes sujos
restos de poemas há muito provados.
o não-leitor prossegue a sua vida, indiferente.

assume o escritor a sua condição de lavrador
levando os joelhos a terra, deixando que os dedos
mergulhem no mar castanho onde nascem as videiras.
não se pense, no entanto, que lhe são desconhecidas
as distâncias entre a enxada e a caneta.
o que o escritor lavra, neste gesto repetido,
é a comunhão do homem com a terra.

ameaça a lágrima cair, desbotar a tinta
desta lã, fiada e entrelaçada até ao cansaço.
ameaça, a do leitor integrado, apagar, impedir outras leituras,
quando é um pedaço de si o que se constrói em literatura.

mas onde está a realidade?
não está nas páginas dos livros
- diz o escritor, ombros encolhidos,
a limpar as mãos sujas de terra nas calças.
o leitor, o que se viu em letra, de olhos vermelhos,
para além da verdade e da mentira,
chora a lucidez do criador.

também eu lembro o tempo - fala,
agora, o leitor, enquanto caminha sobre terrenos lavrados.
ao fundo ouvem-se os tiros, não já caça, guerra.
os olhos vermelhos, no regresso à casa.
para além da dor, também o incómodo dos fumos,
dos cheiros, da lama; palavras que nos sujam.

toma um banho quente, descansa.
amanhã não lembrarás as lágrimas de hoje,
só a dor constante.
talvez não se voltem a abrir as páginas,
- medo de algo a saltar como os castelos dos livros infantis -
os fantasmas escritos pelo teu irmão.

in Registo de Nascimento, 2005