as coisas simples nascem como as árvores.
quando recentes, parecem crianças sem esqueleto,
pequenos ramos trémulos e inseguros, sem cor.
chegam junto dos nossos olhos e ouvidos,
sussurram-nos desejos, abraçam-nos.
as coisas simples, de tão pequenas, tornam-se
grandiosas, imprescindíveis.
as coisas simples são como as pessoas que amamos.
a minha margem é o teu abraço.
é por ele que me guio, nele me encontro.
muitos me diziam, segue a linha
no meio da estrada, é ela a estrela da manhã.
eu chorava, sentia-me perdido.
até que um dia cheguei-me à margem, ao teu abraço,
e hoje sou eu quem diz,
procura o meio da estrada nas margens do amor.
não te deixes assustar por palavras:
as palavras nunca feriram ninguém de morte.
teme antes os lábios que ficaram por beijar
e a pele que não cheiraste.
sobra-te em corpo o que te faltou em beijos,
ouves quem te sussurre ao ouvido.
viras-te para o outro lado da cama,
respiras fundo, soltas uma lágrima.
esse sussurro faz-te listas do que te sobra,
sempre equilibrado com o que te falta.
corta-te pedacinhos que ninguém deseja.
os dias perfeitos são como os amores perfeitos:
duram pouco tempo, sempre tão pouco tempo.
depois ficam os olhares perdidos sem resposta
e os dedos frios de não terem quem tocar.
os dias perfeitos são como os amores-perfeitos.
por muito bonitos e fortes, de um puxão
se vai o caule e de fraqueza lhe secam as folhas.
olho para a rua onde todas as lojas estão fechadas.
são quatro da manhã, chove.
quero os meus morangos, quero o teu amor
- repetes baixinho ao meu ouvido.
eu vagueio com passos pequenos, marcando na calçada o rasto dos sapatos.
quero os meus morangos, quero o teu amor.
quando a meio da noite abres os olhos,
não é para te lembrares da cama onde dormes
nem do homem que te acompanha.
o que pensas, nessas horas tardias, é que estás viva e te sentes só.
depois, seguras a minha mão adormecida
e voltas a cerrar os olhos, calma.
ensaiar a solidão das auroras
em cada pedaço de mim que fica por dizer.
gostava de poder ouvir de alguém
uma mensagem terna e quieta, como os meus dias.
foi depois da estrada, depois do mundo,
o momento onde, no meu descanso,
entornei uma nuvem sobre um monte
e fiquei a ver árvores desaparecer.
in Registo de Nascimento, Livrododia, 2005.