6.1.12

Enganados

Desde cedo o Rapaz começou a ser único.
Único na forma como abria muito os olhos e parecia ver, mal tinha nascido.
Único na forma como se alimentava, como se uma fome universal viesse dentro de tão fraca composição de carnes.
Único na forma como parecia articular palavras, discurso, nos leves gemidos que se confundiam com o choro nos seus dias iniciais.
Os adultos olhavam-no e diziam-no único, como só numa família de únicos se poderia ver.
Desde cedo o Rapaz pouco percebia do mundo.
Mas percebia que aqueles que mais perto de si estavam nesse mundo, viviam enganados.

5.1.12

Único

O Rapaz nasceu para ser único numa família de únicos.
Pai e mãe eram filhos únicos, no seu único casamento, e todos os seus avós eram filhos únicos também.
Para ele adivinhavam uma vida de coisas únicas, todas elas de compostos simples, mas memoráveis.
O Rapaz nasceu para ser único.

4.1.12

A história do Rapaz

Vou contar-vos a história do Rapaz.
Embora não tenha o estilo, o verbo, nem a condição para o fazer bem, faço-o porque a conheço.
Poderia tentar começar pelo início, mas aceito as minhas limitações.
Assim, começando a história pelo dia do nascimento do Rapaz, não há como enganar logo na primeira frase da história. Faço-o in media res. Foi assim que nasceu o Rapaz.

18.11.11

Pode voltas atrás. Podes sempre voltar atrás. Pensa bem se é isso que queres. 

17.11.11

Não gosto do que escrevo. Escrevo pouco e não gosto. Sento-me numa café, tenho papel e caneta, escrevo um poema e não gosto. Penso em publicá-lo e não quero. Não gosto do que escrevo. Rasgo livros antigos e deito ao lixo toda a produção adolescente. Fecho algumas portas como quem sacode toalhas à janela. Não durmo de noite porque procuro frases exactas. Escrevo pouco, cada vez menos. Não gosto do que escrevo.

16.11.11

A independência é um jogo amigável, uma data marcada no calendário. Uma coisa que só acontece na cabeça de alguns. O incómodo é um determinado período do mês, um dia certo da semana. A mesma frase, a mesma ideia, depende de segunda, terça, quarta ou quinta-feira. Para ser a pior coisa do mundo. Para ser só qualquer coisa de que te vão culpar no futuro. Para não ser nada, porque ninguém deu por ti a dizê-la. 

15.11.11

O fim de uma amizade é um lançamento lateral. Ninguém parece dar muita importância a isso. Se bem executado, passa como nada. Quase um intervalo na normal rotação do mundo. No entanto, até num lançamento lateral podes cometer uma falta ou, pior, lançá-lo na direcção de um adversário. Assim, perdes o controlo da bola e acabas mesmo por sofrer um golo. O fim de uma amizade é um sinal de perigo numa auto-estrada vazia.

14.11.11

A emoção é uma área restritiva. Tens pouco tempo para te deixares ficar lá dentro. Esperas que reparem em ti, mas apenas os que te importam. Queres sentir-te importante ou sair dali a correr. Tens pouco tempo, é isso. A emoção é uma área restritiva. E quando a provas, ainda assim temes, que a anulem por pretensa falta. 

4.11.11

Casas casas

Para não te magoares mais, agora o passado é todo ficção. Chegou o frio, sabes que podes vestir um casaco e caminhar pela cidade quando anoitece. Vais acariciando a barba e sentindo-te crescido. Um homenzinho, quase. Sabes bem o que fazer para não te magoares mais. Passas pelas portas das casas, das casas, seguro de que numa delas tens o teu lar. Aprendeste a construir com quatro mãos. Tens duas cabeças para pensar. Sabes bem o que fazer para não te magoares mais. Agora o passado é todo ficção. Podes vivê-lo como um filme. Há um sinal que te avisa do final da sessão. Passas os dedos pelos cabelos, enches um copo de vinho, sentes-te mais sossegado. Para não te magoares mais, as casas, as casas são só casas. Aprendeste a acordar em segurança.

3.11.11

Outra casa (2011)

Regresso a ti sem sentimentos.
Apenas umas paredes,
um resto de mobília que a custo
reconheço.
Só sei do encanto inicial
pela memória que se apaga
e todas as histórias submersas
aguardam agora pelo futuro
para se refazerem da bruma.
Afinal, nós somos sempre o que vivemos
em cada momento, em cada passo.
Pararemos um dia para pensar.
Depois da morte, talvez.

2011

2.11.11

Uma casa (2011)

O prédio está em silêncio, no seu repouso
erigido à beira da estrada.
Sou capaz de imaginar alguma brisa,
folhas de arbustos a correr assustadas.
No quarto ao lado, tu. Adormecida e ausente,
em sonhos. Levanto-me e apalpo
o trajecto reconhecido, a luz apagada.
Na cozinha, sento-me perto da janela.
O frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
Não sei o que espero, quero ler na escuridão
das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas.
Reconheço a cidade por um avião que passa,
ao alto. Só nos perdemos assim, silenciosos.
Podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
a fingir-se tela de imaginações. Ouviria um rio.
O frigorífico. Pressinto a electricidade, no silêncio
impossível desta casa. Para voltar ao meu colchão,
passo pela porta do quarto onde dormes.
Sim, estás lá. Procuro, no monte de roupa suja
que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
Protege-me a escuridão. Paro junto à porta,
afinal irrompe a respiração na ausência de sons.
Não faço malas, não sei se me apetece voltar.
A carteira, os pensamentos de que não me consigo separar.
Mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
Não faço barulhos. Deixo, em cima da mesa,
um caderno em branco, o meu recado.
Vais fingir que eu nunca existi
e eu não vou voltar a procurar como dizer
coisas que me doem.
Depois da morte, talvez.


2011

1.11.11

Nove passos na escuridão (2005, II)

deixo, em cima da mesa, um caderno em branco onde possas guardar,
sempre que queiras, coisas da ordem do incomunicável ao próximo.
depois da morte, voltaremos ambos a estas páginas.
e procuraremos renascer no apagar das palavras.

o prédio está em silêncio, no seu repouso
erigido à beira da estrada.
sou capaz de imaginar alguma brisa,
folhas de arbustos a correr assustadas.
no quarto ao lado, tu, adormecida e ausente,
em sonhos. levanto-me e apalpo
o trajecto reconhecido, a luz apagada.

na cozinha, sento-me perto da janela.
o frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
não sei o que espero, quero ler na escuridão
das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas.
o prédio como hospício de pessoas perdidas.
reconheço a cidade por um avião que passa,
ao alto. só nos perdemos assim, silenciosos.
de dia, ninguém ouve os aviões.

podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
a fingir-se tela de imaginações. ouviria um rio.
o frigorífico. pressinto a electricidade, no silêncio
impossível desta casa. penso em nomes,
Miguel, Pedro, Sérgio, Alexandre. penso em movimentos,
ataque, defesa, lateralização. cinco da manhã
de uma noite por existir, não pode haver distracção.

para voltar ao meu colchão, passo pela porta do quarto
onde dormes. sim, estás lá. procuro, no monte de roupa suja
que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
para não me denunciar, a escuridão. paro junto à porta,
afinal irrompe a respiração na ausência de sons.

a casa, de noite, é uma sinfonia.
nunca estamos sós, apagados.
sempre alguém, algo,
para nos dizer que existimos.

encontro as peças de roupa.
não faço malas, não sei se me apetece voltar.
a carteira, os pensamentos de que não me consigo separar.
mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
não faço barulhos.

olho o poema, não me entendo na decisão do seu início.
talvez o poema não comece exactamente na primeira palavra.
talvez devêssemos virar tudo isto ao contrário.

deixo, em cima da mesa, um caderno em branco,
o meu recado. vais fingir que eu nunca existi
e eu não vou voltar a procurar como dizer
coisas que me doem. depois da morte,
talvez.

in Registo de Nascimento, 2005

31.10.11

Nove passos na escuridão (2005)

I
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco onde possas guardar,
Sempre que queiras, coisas da ordem do incomunicável ao próximo.
Depois da morte, voltaremos ambos a estas páginas
E procuraremos renascer no apagar das palavras.


II
O prédio está em silêncio, no seu repouso
Erigido à beira da estrada.
Sou capaz de imaginar alguma brisa,
Folhas de arbustos a correr assustadas.
No quarto ao lado, tu, adormecida e ausente,
Em sonhos. Levanto-me e apalpo
O trajecto reconhecido, a luz apagada.


III
Na cozinha, sento-me perto da janela.
O frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
Não sei o que espero, quero ler na escuridão
Das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas,
O prédio como hospício de pessoas perdidas.
Reconheço a cidade por um avião que passa,
Ao alto. Só nos perdemos assim, silenciosos.
De dia, ninguém ouve os aviões.


IV
Podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
A fingir-se tela de imaginações. Ouviria um rio.
O frigorífico. Pressinto a electricidade, no silêncio
Impossível desta casa. Penso em nomes,
Miguel, Pedro, Sérgio, Alexandre. Penso em movimentos,
Ataque, defesa, subida, descida. Cinco da manhã
De uma noite por existir, não pode haver distracção.


V
Para voltar ao meu colchão, passo pela porta do quarto
Onde dormes. Sim, estás lá. Procuro, no monte de roupa suja
Que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
Para não me denunciar, a escuridão. Paro junto à porta,
Afinal irrompe a respiração na ausência de sons.


VI
A casa, de noite, é uma sinfonia.
Nunca estamos sós, apagados.
Sempre alguém, algo,
Para nos dizer que existimos.


VII
Encontro as peças de roupa.
Não faço malas, não sei se me apetece voltar.
A carteira, os pensamentos de que nunca estou separado.
Mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
Não faço barulhos.


VIII
Olho o poema, não me entendo na decisão do seu início.
Talvez o poema não comece exactamente na primeira palavra.
Talvez devêssemos virar tudo isto ao contrário.


IX
Deixo, em cima da mesa, um caderno em branco,
O meu recado. Vais fingir que eu nunca existi
E eu não vou voltar a procurar como dizer
Coisas que me doem. Depois da morte,
Talvez.



2005

29.10.11

"Comprei casa com empréstimo bancário. Pus nela as minhas poupanças, a minha ideia de lugar amável, os meus livros, a minha família. Depois, a casa foi envelhecendo e os juros da Euribor foram subindo. Por ser tão custoso mantê-la, é muito difícil não desistirmos da casa; mas é igualmente inviável não termos uma habitação.
O preço de viver não se mede apenas pelo spread, pelo Banco Central Europeu ou pelo valor do crude. Basta dizer que o Verão vai acabar; que a minha mãe viajou de bela a velha em segundos; que o meu pai morreu no ano passado antes de falarmos; que já me vai faltando a ingenuidade essencial de acreditar.
A poesia sabe disto?"



Joaquim Jorge Carvalho

2.9.11

Com que voz


As vozes embalaram-me durante anos. As vozes da casa, das paredes, dos que existiam e não existiam. As várias vozes da minha boca. As muitas vozes da imaginação. As vozes seguras. As vozes incertas. Sempre, num balanço diário, desde o acordar ao adormecer.

Uma sinfonia precisa sempre de uma organização. Pegamos nos vários instrumentos e tentamos que, da confusão, nasça uma harmonia. Às vezes conseguimo-lo à primeira. Noutras, muitos anos se gastam na perseguição desse objectivo.

Não canso o meu espantar perante uma coisa bem feita quando o pensamento era ainda tão rarefeito. Nem perdoo a preguiça por não ter colocado todos os outros textos acima do nível destes menos maus.

Enquanto houver vida, haverá mudança.