1.11.11

Nove passos na escuridão (2005, II)

deixo, em cima da mesa, um caderno em branco onde possas guardar,
sempre que queiras, coisas da ordem do incomunicável ao próximo.
depois da morte, voltaremos ambos a estas páginas.
e procuraremos renascer no apagar das palavras.

o prédio está em silêncio, no seu repouso
erigido à beira da estrada.
sou capaz de imaginar alguma brisa,
folhas de arbustos a correr assustadas.
no quarto ao lado, tu, adormecida e ausente,
em sonhos. levanto-me e apalpo
o trajecto reconhecido, a luz apagada.

na cozinha, sento-me perto da janela.
o frigorífico remexe-se, eléctrico e molhado.
não sei o que espero, quero ler na escuridão
das casas vizinhas muitas outras sombras sentadas.
o prédio como hospício de pessoas perdidas.
reconheço a cidade por um avião que passa,
ao alto. só nos perdemos assim, silenciosos.
de dia, ninguém ouve os aviões.

podia fechar os olhos, um escuro mais escuro,
a fingir-se tela de imaginações. ouviria um rio.
o frigorífico. pressinto a electricidade, no silêncio
impossível desta casa. penso em nomes,
Miguel, Pedro, Sérgio, Alexandre. penso em movimentos,
ataque, defesa, lateralização. cinco da manhã
de uma noite por existir, não pode haver distracção.

para voltar ao meu colchão, passo pela porta do quarto
onde dormes. sim, estás lá. procuro, no monte de roupa suja
que deixei na sala, as peças suficientes para sair à rua.
para não me denunciar, a escuridão. paro junto à porta,
afinal irrompe a respiração na ausência de sons.

a casa, de noite, é uma sinfonia.
nunca estamos sós, apagados.
sempre alguém, algo,
para nos dizer que existimos.

encontro as peças de roupa.
não faço malas, não sei se me apetece voltar.
a carteira, os pensamentos de que não me consigo separar.
mantenho as chaves do lado de dentro da porta.
não faço barulhos.

olho o poema, não me entendo na decisão do seu início.
talvez o poema não comece exactamente na primeira palavra.
talvez devêssemos virar tudo isto ao contrário.

deixo, em cima da mesa, um caderno em branco,
o meu recado. vais fingir que eu nunca existi
e eu não vou voltar a procurar como dizer
coisas que me doem. depois da morte,
talvez.

in Registo de Nascimento, 2005