30.12.15

Literatura

Houve um tempo em que escrevi para apagar o passado e um outro tempo em que escrevi para adivinhar o futuro. Em ambos falhei rotundamente. A literatura nunca me salvou. Coxeei sempre entre as palavras que não me serviam. Existe imensa coisa na minha cabeça que não cabe no dicionário. Um dia, deitado numa cama onde se ouvia o mar, confessei finalmente o meu insucesso e libertei-me. Agora já quase só escrevo para fazer balanços, ainda de palavras mancas, salvas pelo desinteresse de um público que não existe. Não me preciso que me salvem, a literatura ensinou-me o caminho.

29.12.15

Nome falso

Entregaram ao destinatário certo um envelope onde apenas um nome e o seu país, Inglaterra, constavam. As notícias dizem que o homem terá ficado espantado com o facto. Deduzo que aquilo que é anunciado com felicidade - a eficácia de um serviço - pode, no entanto, ser uma quase condenação da privacidade. Numa época em que todos acedemos a todos através da rede, já não é possível safar-nos com um "sou de Inglaterra" para nos despedirmos definitivamente de alguém que não queremos rever. Temos, definitivamente, de nos esconder debaixo de um nome falso.

28.12.15

Regresso

Cabe sempre muita gente naquele café, mas nalguns dias do ano - as festas, os fins-de-semana de verão - o espaço parece bem menor, tal a quantidade de pessoas que querem entrar, provar, comer, beber, consumir. Há já alguns anos que não entrava assim, tão descontraído, num espaço tão cheio e surpreendeu-me ver o meu canto do balcão disponível. Regressei ao lugar onde tudo se vê, a porta de entrada, as diferentes televisões, os bolos ainda quentes a sair da cozinha. Pedi um café, uma água com gás, limpei os óculos, cumprimentei um conhecido. A mulher do lado de dentro do balcão tratou-me com deferência pouco habitual. Talvez até ela tenha percebido a solenidade do momento. Podemos sempre regressar onde gostamos de ser infelizes.

25.12.15

Espectro

Um espectro mas não lívido, quente o bafo no gelo da madrugada caminhando pela rua com uma caixa à altura do peito - o olhar fixo no meu, cruzando-me onde nenhum outro sinal de vida - as casas cheias de amor e famílias que se odeiam, copos partidos, risos de festa, a mentira do para sempre - e a sombra a definir-se na aproximação, o raro transformando-se em corpo inteiro, as partículas que se conjugam e então percebo - o olhar assustado, o espectro sou eu.

18.12.15

Teorizar

É impossível resistir à tentação de teorizar a sua ausência. Deslocou-se para o sossego, poderia ser a informação deixada numa qualquer tentativa de inscrição fúnebre. Outros, talvez mais apressados, prefeririam dizer que o autor morreu. No entanto, talvez tenha sido sempre essa a personagem presente, a mais de todas, naquilo que foi o seu passado. A vocação de inventar diários que coloquem em causa as ideias que se constroem em seu redor. Pode parecer complicado, imaginar uma coisa que existe para se colocar em causa a si própria. Experimentem pensar nela. A tentação de teorizar está sempre presente.

17.12.15

Chuva

Debatia-se com os dias de sol. Eram os dias que mais clamavam pela sua saída do casulo. A chuva não o perturbava assim. Imaginava-se sempre outro, de tronco despido, a face barbeada, absorvendo sensações veraneantes. Mas não podia. Mesmo no inverno mais quente da história, nem à janela se chegava. Não se permitia tal ilusão. Ficava quieto, à espera da chuva, ciente de que até essa certeza - a de que um dia a chuva, finalmente, chegaria - se prestava à mais inútil das dores.

16.12.15

Luta

Trabalhou arduamente para se tornar invisível. Deslocou-se do mundo, resguardou-se de acenos, mais ou menos interessados. Para ele, só as palavras contavam. A cofiar as barbas, ouve os barulhos da rua, lá fora, mas nada o demove do encerramento que se atribuiu. Agora, passados os tempos em que as palavras conseguiam originar revoluções, regressa calmamente ao labor. Uma espécie de ritual da ignorância em combate consigo mesma. Uma luta onde sabe sempre ficar a perder.