30.4.13

O saco


O que levas aí no saco? Tu, um gajo desse tamanho, levas isso no saco? A minha mãe acha que tu és intelectual, ela que não saiba que andas a brincar com carrinhos. Onde é que os arranjaste? A sério? O que disseste à tipa na loja? Ela não estranhou um gajo como tu andar a comprar carrinhos? O quê? Às pessoas, nas lojas, acontece-lhes de tudo? Mesmo assim, é difícil de perceber. Antes de entrares lá em casa tenta meter isso no bolso grande do casaco. 

29.4.13

Um táxi para quatro

Um táxi para quatro. A juventude perdida. A noite como as outras. O calor de verão numa cidade mínima. Nada que nos preocupasse. Um táxi para quatro. Direção ao mar. Era tudo o que pedíamos. Sem horas para chegar. Portas que se abrem. Bares que se descobrem. Alguém que nos recebe com surpresa. Um sorriso. Um aperto de mão. Um táxi para quatro. A névoa marítima. O não saber nunca quanto vale acordar na manhã seguinte.

4.4.13

Não feches os olhos


Não feches então os olhos,
não é sono
o formigueiro que toma
o teu corpo.

Não feches os olhos,
cerra antes os punhos
sobre o lençol quente
onde te deitas.

Não feches então os olhos,
abre o sorriso,
deixa-te ser brilho
no meu peito.

Não feches os olhos,
não temas a noite.
Dessas paredes despidas
inventaremos um horizonte.

3.4.13

Foram muitas as tardes


Foram muitas as tardes
que passamos em frente
à televisão, em casa
ou no café, a ver
a Volta à França.
Estranho pensar agora,
esse tempo nunca existiu.

Primeiro deixámos de ter
idade para ficar pelo chão
da casa a fazer corridas
com caricas.
Depois crescemos e nesse
movimento cada um
foi para o seu lado,

convencido de levar
consigo, mais que
a razão, a própria vida.
Finalmente, quando tudo
era já passado, foram-se
também os nossos heróis.
Esse tempo nunca existiu.

2.4.13

Parentes na lama


Ensinaram-me o medo e o silêncio
para que tudo fosse conveniência
e não aventura desmedida.

Fizeram-me enfrentar a desilusão
repetidamente a cada idade
ora empurrando ora puxando-me
de onde queria estar.

No final, ao verem reerguer-me das cinzas
disseram que tudo fora por amor,
como se estivessem felizes
com a sua participação no resultado.

A bem da minha sanidade, calei-me,
deixei-me estar quieto e arrumado,
não fosse desrespeitar a sua memória.

1.4.13

Tempo heroico


Chamar heroico ao tempo,
não ao que passa mas ao que fica,
à chuva, ao sol e ao vento,
menos do que quem se admira,
mas por paixão se encara,
frente a frente,
com os da natureza poderosos elementos.

Chamar heroico ao tempo,
simples jogo de palavras
que se vai perdendo por traduções,
constância de quem se quer vivo
e, passo a passo, se aproxima
do que dentro do coração
o faz sentir-se humano.

De invocar Ruy Belo passou o metro,
desmedida sensação de quem
não se fez português por encomenda,
montado nos livros das bibliotecas.

Agora arruma-se em bens mais antigos
e por ofício, mais que por desejo,
burila lentamente cada letra
sem ideia da palavra que sustenta.

Chamar heroico ao tempo,
gritar pelas ruas vivas sem,
ao menos, saber de antemão
a saciedade crescente nos pulmões,
tão cruas fossem as necessidades
de quem assim se encontra,
num repente, ausente de todas as certezas.

Chamar heroico ao tempo,
pois não se acanhem,
chame-se às coisas o que elas bem merecerem
e siga-se em direção à frente,
a guerra não se faz na ausência,
nem os corpos tremem por apartado,
assim se escreve lei neste lugar.

Variação sobre tema de Alexandre Desplat