29.6.15

Difteria

Nunca estaremos longe
ao ponto de a natureza
humana

não nos poder apanhar.

24.6.15

Poética

O meu poema é sexta-feira

desejado como caminho
onde se passa a correr

para chegar ao outro lado

onde não estou eu,
nem o meu poema.

22.6.15

Solstício

Repousando a voz
que rasga céus inteiros

como tempestades
surpreendendo
crianças na praia

Janita Salomé contempla
um trio de sardinhas assando
junto às altas paredes
do Forte de Cacela Velha.


19.6.15

Português suave

Estás fora de jogo,
sempre fora de jogo,
porque te armaste em forte
quando queriam tipos frágeis,
porque te armas em suave
quando querem gajas rudes.

17.6.15

Lenhador

Não precisas de ser lenhador
para comprar um machado,
para afiares uma lâmina
e procurar no meio do mato
uma árvore genealógica,
cortá-la em dois ou três golpes.
Não precisas de ser lenhador
basta querer e fazer.

15.6.15

Feira cabisbaixa

Qualquer coisa de ti se perdeu
enquanto continuas em busca
de te encontrar

É por isso que fechas os olhos
quando na rua te cruzas com quem
não queres falar

É por isso que entras na feira
sem teres a certeza de ser esse
o teu lugar

11.6.15

Menos é menos

Há quem arrisque tudo pelo poema
- a casa, o amor, a própria vida -
e quem com um poema arrisque tudo
- a rua, os amigos, a autoestima -

chega a parecer ofensa que o faças
sem um esforço
tão frágeis as palavras se acumulam
nesse intento.



9.6.15

Empatia

Levaste até ao fim a cara fúnebre
por respeito aos que ao teu lado
choravam.

Conhecias, no entanto, este cenário
onde uns são vencedores e outros
vencidos.

Saltaste só por dentro nessa alegria
impossibilitada de comungar sem
embaraço.

Aprendias, desse modo, a empatia
e o fluxo de todas as coisas neste
tempo.

3.6.15

Estradas vazias

Já todos escreveram sobre estradas vazias
mas poucos conduziram um carro
às três da madrugada de segunda-feira

a hora em que os corpos são projetos de morte
em busca de uma qualquer ressuscitação laboral

pois deixa-me que te diga o quão inócuo
pode ser este quadro de nada noturno
auto-estrada beijada pela humidade

Um ou outro cairá à vala comum é certo
já todos escreveram sobre mortes brutais
mas nem todos estão tão mortos quanto isso

1.6.15

Sentenças sem acesso ao avesso

Deslizas a mão pelo escalpe
já quase não tens pêlo

No espelho confirmas a barba
cada vez mais branca

O corpo ora alarga ora adelgaça
tudo é controlo efémero

As dores que te rasgam os ossos
levaram-te a paciência

Tudo isso se expressa tão certo
na manipulação do verso

Tornou-se impossível nos livros
compreender-te o avesso.