Fim de ano

Enquanto a minha escrita se encaminha para a sua morte, eu sigo para outra vida.

Anónimo

Na cena do acidente ficou um pequeno vestígio de sangue que nenhum teste conseguiu identificar. Poucos acreditam, no entanto, que o anónimo seja um sobrevivente.

Cão

Os olhos do cão seguem-me pela sala, num silêncio feito apenas da sua respiração cada vez mais ansiosa. Mais um dia que passa, igual. E o cão que não ladra.

Árvores

Como as árvores que, ao longe, passeiam vagarosas pela tarde, ainda que tenham os pés presos no chão.

Natal

Não escreverás no dia de natal. Para que a frase não tenha o óleo dos fritos, nem um papel de presente amarrotado se intrometa no ritmo dos teus desejos.

Festas

O mundo não foi feito para se desejar boas festas. Que as festas sejam boas é apenas o sintoma de que as coisas correm como deveriam correr.

Falta

O Doutor não queria deixar a filha à espera na porta do Colégio. Por alguma razão, parecia-lhe propício que ela não experimentasse a ansiedade da falta momentânea.

Vento

Ainda procura em tudo a poesia do mundo. E a cada passo ela foge-lhe, como se o vento não estivesse interessado em que homens e sonhos se encontrassem.

Dor

Também ele chorou e tremeu, pensando que o amor só seria justificado se passasse pelo sofrimento. Ainda não sabia que, quando dói, não é amor.

Prova

Mesmo desinspirado, atiras-te, uma e outra vez, às palavras, à folha em branco. Cansas-te e desgastas-te, à procura de qualquer coisa que não existe. Queres fazê-lo, não por mais nada, apenas para dares prova de como és mau.

Reescrever

Aprender a reescrever a viagem, não transforma a viagem. Apenas faz com que a entendas pelo caminho a seguir.

Espera

As palavras escritas na parede acabaram por desaparecer. Alguma lavagem mais decidida, talvez. No entanto, não devemos ficar tristes pelo que desaparece. Sim, esperançosos com o que nos espera.

Insondável

Gastou então o tempo a apalpar o próprio corpo, tentando entender de onde lhe chegavam as dores que parecia sentir. Não havia nada para lá da realidade do que se via de fora. Apenas essa ideia de perseguir o insondável.

Olhar

Nunca repetia o mesmo olhar duas vezes.
Foi o que eu percebi.

Diálogo

Um diário não é um diálogo, disse-me alguém. Primeiro não percebi se se referia ao falar com as páginas do caderno, no que me parecia estar totalmente errada. Mas, depois, percebi. Guardar memória não passa por conversarmos connosco próprios. Isso é ficção. Daí o meu sossego.

Poética

Lembrei-lhe que, mesmo para se estar vivo, é preciso uma poética. Ele não percebeu.

Livro

Tinha uma noção meio desviada do poder das palavras. Recebia-as com algum desprezo. Entregava-as sem qualquer atenção. Estava vivo de mais para se perder num livro.

Realidade

Hoje é o dia em que tudo começa. O dia em que sabes não poder dormir. O dia em que tudo conta. E tu estás preparado. Cruzas os dedos, ranges os dentes, olhas fixamente. Na tua cabeça, tudo acontece uns poucos segundos antes da realidade. É só isso que é preciso.

Público

À frente da sua casa, corria livre pelo relvado. Sabia que nem ali estava solto das suas preocupações. Era apenas um regozijo municipal, uma espécie de colorido público da encenação da sua morte.

Cidadão

Limpava os dedos nas velhas calças de ganga. Comprava guerras com a sua própria saúde. Não tinha nome. Bebia o seu café e saía. Como um qualquer cidadão do mundo.

Silêncio

Foram alguns dias sem dores, outros tantos sem pensar, muitas horas sem querer, alguns minutos perdido. Foi apenas um silêncio. Já passou.

Frio

Podias ser mais frio, invernoso, aprender a chorar no tempo certo. Mas no teu boletim meteorológico, a previsão é sempre incerta.